alegoria

terça-feira, 29 de dezembro de 2009 às 17:46
hoje acordei lembrando que o ano está acabando. e me dei conta que assim que um ano acaba, outro começa. de súbito, veio-me à mente a lembrança do começo desse ano. da areia entrando nos pés, das tuas mãos na minha cintura e... principalmente... da primeira coisa que fizemos quando o novo ano chegou: beijamo-nos. e foi um beijo igual a todos os outros nossos beijos. não foi um beijo mais acalorado, não tinha sequer um sabor diferente. era só um beijo. mas era teu e isso bastava para que fosse o melhor ritual de ano novo. nos abraçamos. nos olhamos. não lembro o que dissemos, mas o beijo ficou. o primeiro beijo do ano. como uma promessa que não se cumpriu foi o primeiro dos poucos que vieram. e eu queria mais. sempre quis mais e tu, de certo, nunca me negaste, mas era raro quando me oferecias. e quando vinhas, vinhas rápido, coelho de Alice correndo. chorei um pouco porque saudade é coisa doída, e dói um tantinho mais lembrar de ti com carinho. não que tu não mereças carinho. mereces todo. mas não o meu. foi o meu carinho que te sufocaste. foi o meu carinho que te afastaste mais e mais pra que depois tu voltaste pedindo abrigo. mas a fonte cessou, e eu te pedi tempo, espaço, calma. tu não tinhas, embora prometeste. então te neguei com uma dor imensa de quem nega um filho que não reconhece. não te reconhecias mais. mas te querias com ardor incomensurável. tu foste. fiquei. e um outro ano está vindo. e passarei só, prelúdio dos beijos que não virão. e tu, não tenho dúvidas, passarás alegremente com amigos e bebidas. e quem sabe, quando der meia-noite, lembrarás de mim por um instante, meu beijo simplório da última virada. ou não. ou evitarás lembrar de quem manchou tua honra. ou, ainda, não lembrarás por ter escolhido caminhos mais floridos. tu, que anuncias ao vento novas flores, estará cativando novos cheiros? cultivando novos sabores? mas por estares longe, dedico aqui, ao vento das teclas, meu carinho escondido. é provável que tu não leias, mas se por ventura ainda sou letras lidas, que seja tua mensagem.

um ano lindo, pulcro poeta. que te lances ao mar da ventura e que eternos amores sejam barcos ancorados. e que nada mais, nada, seja partida.

beijos de quem não é mais flor. mas que ainda é vida.



"E de amar assim, muito amiúde, é que um dia, em teu corpo de repente, hei de morrer de amar mais do que pude." [ Vinicius de Moraes ]

brilho fosco

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009 às 20:15
sabe o que me encanta? cor forte! um azul brilhante, um vermelho escarlate, um roxo escuro. me encanta essa invenção arcaica chamada livros. esse um monte de folhas sobrepostas, com letras que me desperta alguma coisa que sei-lá-o-quê. me encanta a risada do meu pai, sempre longa e sonora, grave demais certas vezes, sempre depois daquele gole de cerveja na varanda fresca. me encanta ver pela janela da sala os pés pro alto da minha mãe que se balança na rede, não por muito tempo, já que há sempre alguma coisa por fazer, e ela sempre faz. me encanta as paredes do meu quarto cheias de desenhos infantis, feitos em tempos recentes, por gente madura demais pra desenhar traços firmes. me encanta o cheiro de tempero que sobe as escadas e me acorda de um sono conturbado, como é o sonho de quem sonha a realidade. me encanta aconchego de cachorro manhoso, no calcanhar de quem descansa, carinho gratuito de quem não entende a lógica da reciprocidade. me encanta ouvir música sem pretensão e me lembrar sempre da mesma pessoa. me encanta celular desligado e a incerteza se alguém do outro lado se lembrou de mim refugiada.

são tempos bons. mas ainda falta alguma coisa. ainda falta...



"sempre há alguma coisa que falta. guarde isso sem dor, embora, em segredo, doa." [ c. f. abreu ]

o preto dos olhos

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009 às 10:23
ele disse que queria paz. no momento em que eu queria só ele. no momento em que queria ele com todos os seus palavrões, suas frustrações com o mundo, sua austeridade paternal, seus esquecimentos temporais, sua falta de mobilidade... e eu o queria mesmo assim. ele queria paz. e eu queria o seu tormento.

como uma consequência inevitável, ele disse "...e você não é minha paz!". é, eu não era sua paz. e sabia disso. e esperava pelo momento em que ele diria querer ares mais limpos, vistas mais claras... e esse momento chegou bem no momento que eu o queria como quem quer o inalcançável. esses momentos em que o alpinista resolve subir a mais alta montanha. por teimosia. por visão.

mas meu caminho não chegou no cume. e eu perdi dedos, unhas, sorrisos e medos pelo caminho. foram todos amputados. e, sem querer, fui na sua paz, não tão serena como esperava e disse "a culpa é sua!". como se fosse você o gelo frio que me consumiu. mas pensando bem, você não foi.

e como um defeito inato, me descobri te amando. mesmo depois da guerra que foi te ter. e da guerra que foi te perder. nossas aproximações e afastamentos sempre foram tão conturbadas. e nunca alcei vôos muito altos com você para me livrar dessa tempestade. mas enfim, o amor foi descoberto. redescoberto. reinventado.

e como quem cria um filho pra si, não pro mundo. guardei o amor. primeiro na esperança de talhá-lo ao seu gosto. ao seu belprazer. o amor que eu ia te ofertar. depois, lembrando que você precisa de uma paz ilusória que não tem e nunca terá, resolvi deixá-lo errante e amputado aqui. como quem esconde um tesouro que ninguém sequer almeja possuir.

mas é teu. negado, menosprezado, pisado. mas é teu.

e vai morrer. porque a paz também mata.



"Não tem desespero não... Você me ensinou milhões de coisas..."

"que belo estranho dia pra se ter alegria..."

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009 às 22:01
um dia eu vou te cantar um samba. um desses sambas que aprendi em algum lugar colorido da lapa. e vou também sambar pra você, com um sorriso de menina, e você vai rir. como sempre ri. e vai dizer que sambo toda errada. como sempre diz. e vai estender sua mão, pra me puxar pra perto. como sempre faz. e gosto quando faz. gosto quando você enlaça minhas mãos às suas, assim como quem quer, não pra sempre, não por um instante, mas por aquele momento todo, que eu fique ao seu lado. e fico. e não solto, não. e fico boba como quem tem no toque dos dedos, o porto seguro dos dias que virão. mas é mentira. você sabe que é. embora nunca diga a palavra mentira por não acreditar nela. mas é mentira. amanhã a gente nem vai se ver. e nem depois de amanhã. e quem sabe a gente se esbarre por aí. quem sabe você reconheça meu samba errado e resolva dizer no meu ouvido "...mas é lindo mesmo assim.", como você sempre diz. e quando eu me sentir envergonhada, como sempre fico quando você me elogia, vou te abraçar bem forte e esperar o que você sempre diz "tão bom o seu cheiro..." e vou enterrar o pescoço no seu ombro pra não lembrar que amanhã não vou ter você, só seu cheiro na minha roupa. e seu cheiro é bom. como sempre disse. e você ri, ajeita o óculos e me chama pra dançar. e depois que piso muito no seu pé, você me puxa pro canto. e faz planos. como sempre fez. e me chama pra ir pra lugares que eu adoraria ir, mas que nunca fomos. e nunca iremos. mas na hora eu não sei, finjo não saber e rio alto com o convite. "adoraria!" e falo como seria bom sua companhia naquele lugar. como sempre é bom sua companhia em qualquer lugar. e você pegaria minha mão. de novo. e me olharia fundo. de novo. e me diria aquelas coisas tão bonitas. como sempre diz. e me beijaria com gosto de cerveja. beijo desses que não acabam porque não se quer que acabe. eu não quero. e quando acaba. a gente ri sem graça. querendo mais. como sempre queremos. mas é hora de ir. o samba acabou. você solta minha mão. e amanhã é dia de sentir cheiro. e de desejar mais. mesmo que saibamos, os dois, não ter mais. como nunca tem. mas quem sabe você me encontre... quem sabe...

abre os teus armários

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009 às 22:29
Quando cheguei no metrô São Francisco Xavier ele estava lá. Parado. Quando o metrô chegou, pegamos o mesmo vagão. Não sei porquê, mas fiquei reparando nele. Na barba, na camisa listrada, na mochila marrom, no pé que balançava o ritmo da música. Que música seria? Ele tem cara de quem ouve o que? Será que já leu Baudelaire? Chegou minha estação: Uruguaina. Por coincidência, ele saltou na mesma estação que eu. Subiu a escada rolante do meu lado. E, ora veja!, pegou a mesma saída que eu, das muitas que a estação tem. Para minha surpresa, ele percorreu o mesmo caminho, sem sequer me notar. Entrou na mesma faculdade que eu entrei. E parou na mesma cantina do primeiro andar pra pedir, logo após de mim, a mesma coisa que pedi: café. Como um desencaixe, ele não pôs açúcar. Eu botei 4 colheres cheias. Subi de elevador. Ele subiu de escada. Mas chegamos juntos no mesmo andar: o quarto. O andar de Ciências Sociais. Ele cumprimentou a mesma pessoa que eu acenei no corredor. Não estava acreditando! Aquele desconhecido fazia o mesmo curso que eu! E eu nunca tinha reparado nele, nem naquela estação, nem naquele percurso, nem naquele espaço. Nunca tinha visto sua mochila marrom ou sua cicatriz no cotovelo esquerdo. Nunca! Deve ser o que a psicologia chama de 'invisibilidade relacional'. Você convive com a pessoa todo dia, mas sequer repara na existência dela. Nesse dia, reparei. E no dia seguinte, na mesma estação de ontem, cheguei mais perto e vi que ele escutava Elis Regina. E na hora de saltar, quando esbarram na bolsa dele vi que ele lia Bukowski. E quando sentamos na mesma hora pra tomar um café, ele puxou assunto e disse "Gostei da sua camisa!" e eu olhei e vi que era dos Rolling Stones. E nos outros dias, enquanto o metrô não vinha, ele reclamou do tempo. Eu reclamei da hora. E meses depois, encontrando-o todos os dias, sempre nos mesmos lugares, ainda o acho mais misterioso do que sempre fora. Só que agora havia uma coisa diferente. Que eu não queria acreditar.



"vezenquando, uma coisa só começa mesmo a existir quando você também começa a prestar atenção na existência dela. Quando a gente começa a gostar duma pessoa, é bem assim." [ Caio Fernando Abreu ]

domingo, 13 de dezembro de 2009 às 17:38
O amor não acabou. Quando eu ouço o telefone tocar, saio correndo e falo o "alô" mais ansioso do planeta (não reclame das minhas hipérboles!), eu sinto um frio gostoso na barriga quando ouço o seu "alô" do outro lado. E quando não ouço, também sinto, porque todo o percurso até o telefone me traz uma esperança enorme de ser você e eu demoro um pouco pra me dar conta que é outra pessoa. Isso é amor. Não é amor? O amor não está incompleto. Não estou como uma pessoa amputada, que não tem um braço, uma perna, ou a vista e nos dias de solidão sente a dor do membro que não tem... Não! O amor tem tudo: confiança, carinho, zelo, proteção, tudo! O amor não mudou. Continuo querendo seu abraço apertado nos dias de chuva forte, continuo sentindo seu cheiro quando durmo abraçada ao seu casaco, continuo te escrevendo cartas que você nunca respondeu e nunca vai responder. E poderia citar inúmeros "continuo..." porque há muitos. Mas o que acontece é que o amor cansou. E eu cansei junto. E, talvez, não sei, pode ser, você tenha se cansado antes. E tudo desmoronou como uma cascata em peças de dominó. Não sei quem começou, não sei como começou. Só que terminou. De alguma maneira, terminou. E foi doloroso, ainda sinto umas pontadas de dor aqui e ali. Mas foi bom. É difícil seguir em frente com cansaço. E temos muita coisa pela frente... Eu, você. Não mais eu e você. Quem sabe, eu e ele, você e ela. Quem sabe nós. Quem sabe... Não sei. E é gostoso não saber. Só sei mesmo que o nosso amor está cansado. Já está velho. Por mais que haja confiança, carinho, zelo, proteção e tudo, e há!, duvidamos sempre. É muita dúvida. É muito não. Muito sim. Muito muita coisa que já não cabe mais no nosso aquário. Mas o amor não acabou.

E que venham novas cores.


Talvez os homens nasçam com a verdade dentro de si e só não a digam porque não acreditam que ela seja verdade. [ José Saramago ]

Retalhos

terça-feira, 8 de dezembro de 2009 às 19:35
Era mais um desses dias quentes do Rio de Janeiro. Três da tarde, sol a pino, rodoviária lotada. No chão, havia um menino de mais ou menos treze anos, esquálido, negro, vestido somente com uma bermuda surrada. Deitado com o tronco direto no concreto quente da calçada, as pernas estavam elevadas encostadas na parede. Suava muito. E respirava lentamente escandalizando as pessoas com suas costelas quase à mostra. Parecia morto, incólume ao incômodo alheio. As pessoas, por sua vez, passavam, olhavam, sentiam pena, asco, comentavam "menino, sai daí! vai pegar um insolação!", mas não paravam. Parei.
- Ei, acorda!
Nada.
- Ei, menino. Tá muito quente o chão e você tá se desidratando nesse sol.
- Me deixa! - Ele mal abriu os olhos.
- Tá com sede?
Não respondeu.
- Ó, vem aqui pra sombra que eu te dou um pouco de água. - E tirei uma garrafa d'água da mochila.
Ele sequer levantou.
- Você vai passar mal assim, sabia?
- Sei.
- E você quer ficar aí até quanto tempo?
- Até morrer.
Não soube o que responder. Desejei saber de psicologia e falar frases do tipo "Vamos! Você é muito jovem! Tem muito futuro pela frente!" Mas eu não era psicóloga e não via futuro para ele. Mal via pra mim! Vencida, levantei e fui andando para entrar na rodoviária.
- Tia!
Ele ainda estava deitado, com um olho aberto e a mão tapando o rosto do sol
- Tem comida?
- Não tenho, mas posso arranjar. - Apontei para uma barraquinha do outro da lado da rua. - Quer biscoito?
- Não. Quero hamburger do Bob's.
As pessoas que passavam na rua soltaram uma risadinha sarcástica. Uma velhinha ainda disse: "Não se pode dar confiança pra pivete!"
- Olha, eu não tenho dinheiro para comprar no Bob's.
- Ah, tia. Por favor...
Ele já tinha abaixado as pernas, insinuando levantar.
- Eu também queria, mas não tenho mesmo.
- Poxa, tia...
- Tá, vem. Um hamburger.
E ele deu um salto que me assustou. Levantou com uma força surpreendente. Pegou com uma mão a minha água que estava no chão e com a outra ele pegou a minha mão.
- Vamos, tia. Você come também?
- Eu não. Só você.
De certa forma, era estranho eu estar de mãos dadas com um menino que mal conhecia. Mas para ele era tudo tão natural, que fingi pra mim também ser. Subimos a escada rolante.
- Então você gosta de hamburger do Bob's, né?
- Sim. Quando os guardinhas deixavam a gente entrar, eu catava os restos de hamburger que ficavam nas bandejas. Era tão bom! Mas agora os guardas não deixam a gente subir mais.
- Você nunca comeu um inteiro?
- Não, só as sobras das pessoas.
- E qual você vai querer?
- Tem mais de um, tia?
- Tem, tem vários.
- O que você acha mais gostoso!
Ele andava pulando, com aquela ansiedade infantil de quem muito espera. Veio um guarda:
- Ei, ei! Já falei que você não pode entrar, moleque!
- Mas ela vai comprar um hamburger pra mim!
- Não interessa! Anda, desce lá.
Ele olhou pra mim. Pedindo com os olhos que o defendesse. Que fizesse um escândalo, que brigasse pelo seu hamburger! Não disse nada. Não sei fazer escândalos, muito menos tenho peito para brigar com guardinhas. Tinha problemas com autoridade. O guarda disse:
- Senhora, se quiser compra o hamburger e leva lá fora pra ele.
- Mas é rapidinho... Vamos só comprar e...
- Não senhora. O pessoal vai começar a reclamar. Não pode não!
Eu podia usar um argumento jurídico, sociológico, antropológico, psicológico, mas usei só o apelo emocional:
- Por favor, seu guarda...
- Ó, bem rápido! E ele come lá fora...
Ele ainda me deu um sermão de que ali não era lugar pra caridade, que as pessoas se sentem incomodadas, pois ficam com medo de serem assaltadas e além do mais ele tava nojento, suado, fedido e blá blá blá.
Poderia agora fazer um discurso anti-moralista. Poderia criticar algumas éticas. Poderia defender uma bandeira. Poderia me heroicizar. Mas não vou. Comprei o hamburger, ele pegou e saiu correndo pelas escadas, sem agradecer, sem falar, sem olhar pra trás.
Eu fui pro guichê comprar minha passagem e ir pra casa.

Essa história não tem moral alguma. Sinto muito.

sobre morrer

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009 às 11:59
Quando era criança tinha medo da dor. E enquanto viva, eu poderia fugir da dor com remédios ou com o carinho da mamãe que beija o machucado. O meu medo vinha de sentir dor no momento da morte. E qualquer morte que parecia dolorida pra mim era aterrorizante. Morrer queimada. Tinha medo de fogueiras e velas. Até que o fogo me atraiu mais que amendrontou. E comecei a sonhar que caía de abismos. Meu medo, pois, passou a ser morrer caindo. Desviava de bueros. Evitava elevadores... Passou também. Depois de ler Virginia Woolf, e saber que ela tinha colocado pedras no casaco para afundar assim que entrasse na água e no entanto se afogar. Que morte terrível deve ser sufocar embaixo d'água! Mas passou. E infinitos medos me tomaram durante a vida. Medos de morte. Morte por asfixia. Morte por tiros. Todas elas se baseavam na dor. Era esse meu maior medo. A dor.

Mas agora, 21 anos depois, me dei conta que criei um novo medo de morte. Baseado numa dor que é maior do que todas essas que já temi: a dor da saudade. Ah, tenho tanto medo de morrer de saudade! E se morre de saudade, viu? Não se enganem! As estatísticas não mostram, mas muita gente morre de saudade. E pra confessar, tô morrendo aos pouquinhos. Hoje morri um montão. Só de saber que você me despreza e vai embora pra nunca mais voltar. Hoje deitei na cama e pensei na puta saudade que você me faz, e fará. E sempre fez!

Lembro... de um dia chuvoso, chuva dessas de verão, ouvi um raio. Assustada, como sempre fico, fui olhar o céu pela janela. Você disse "Ai, tomara que seja trovão! E que venham muitos". Parece maldade, já que você sempre soube do meu medo infantil de trovões. Mas não era. Era tanto carinho, mas tanto carinho, que você me queria por perto. Me queria com medo pra me proteger. Pra me enlaçar nos seus braços e me apertar fundo como você sempre faz. Sinto uma saudade cruel do seu abrigo. Porque lá fora agora tá um sol imenso, mas aqui dentro só tem trovão.

E já sei. Vou morrer de saudades! Literalmente. E saiba: dói muito essa vontade irremediável de você. Dói muito saber que do outro lado, não sou eu quem você admira. Desse lado de cá, há muito amor. Amor errado, manco, ácido, amor que não serve de nada. Só pra amar. Mas há amor demais. E transborda. E cresce. E dói.

Não tem jeito. Meu trovão é a saudade.


"Querido,
Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que é a você que eu devo toda minha felicidade. Você foi bom para mim, como ninguém poderia ter sido. Eu queria dizer isto - todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim mas o que ficará é a certeza da sua bondade, sem igual. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos." [ Carta de despedida de Virginia Woolf ao marido ]

Parati

terça-feira, 1 de dezembro de 2009 às 15:04
Deitei numa cama alheia. Com um lençol alheio. Com uma pessoa alheia. Tirei a roupa que era minha. E entreguei o corpo que não era mais meu. Nem seu. Nem dele. O resto não me lembro mais. Não que tivesse ébria ou louca. Só não quero mesmo me lembrar. O que vagamente me lembro é de me virar de lado, depois de muitas horas, sentir um calor sufocante e ouvir a voz, que não era minha, devia ser dele, dizer:
- Você está chorando?
Foi aí que meu dei conta de que havia uma lágrima solitária no canto do olho. Estava chorando.
- Claro que não! É o suor.
E suava. Suava muito. Não sabia se o suor era meu ou do corpo alheio. Não sabia se aquelas mãos geladas eram minhas ou dele. Não sabia mais o que era meu. Nem o que tinha sido seu. Nem o que era dele naquele quarto, que certamente, nunca estivera. Não que não quisesse saber. Dessa vez não sabia por embriaguez ou loucura mesmo.
- Quer cigarro?
- Quero.
- O que você tá escrevendo?
- Nada... Coisas que são feias na realidade, mas que ficam bonitas quando escritas.
- Sei.
Essa pessoa não sou eu. Essa pessoa alheia não é minha. E você, você não está mais aqui.

boa noite

domingo, 29 de novembro de 2009 às 14:26
Era madrugada. Eu estava no carro, esperando ele se despedir das pessoas para irmos embora. Eu não queria mais falar com ninguém. Só queria ir pra casa. Enquanto esperava, liguei o rádio. João Gilberto cantava "tá-fazendo-um-ano-e-meio-amor-que-o-nosso-lar-desmoronou". Ele entrou.

- Então acabou...
- Acabou.
- Já acabou tantas vezes.
- Essa é pra valer.
- Como você tem tanta certeza?
- Não tenho.

Ivan Lins começou assobiando "lembra-de-mim-dos-beijos-que-escrevi-nos-muros-a-giz".
- Sabe qual é o nosso problema?
- Nossos erros?
- Não! É o fato dos erros serem sempre os mesmos! Cansa, sabe. Um dia cansa. Perdoar sempre o mesmo deslize. A mesma pisada de bola. A mesma palavra mal dita, a mesma falta na hora errada. Cansa!
- É, você anda muito cansada ultimamente...
- Andamos. Os dois. Tá vendo? Esse seu erro antigo de sempre se eximir da culpa.
- E essa sua mania de achar sempre uma justificativa pra sua culpa, como se minha culpa fosse sempre pior.
- E é pior! Porque você nunca realmente se desculpa por ela.
- E você se desculpa demais. E não faz nada pra mudar.
- Mudar... Você não muda, você não vê? Mesmo erro toda vez. Você não se permite melhorar e ter erros novos. Toda relação precisa de erros novos! Eu quero erros novos! Perdoar os mesmos não tá dando mais.

Nesse momento cairia bem no rádio Vinicius de Moraes cantando "depois-perdeu-a-esperança-porque-o-perdão-também-cansa-de-perdoar", mas enquanto isso veio Moreno Veloso "eu-sou-melhor-que-você".

- Você exige demais da nossa relação.
- Não existe relação sem exigências. Nem as relações pós-modernas conseguem essa proeza.
- Eu tô cansado de ser comparado o tempo todo.
- E eu estou farta de ser subestimada.
- E a gente sempre tenta consertar tudo botando um band-aid e dizendo "vai passar" e seguindo em frente.
- Outro erro nosso.
- Seguir em frente?
- Achar que tudo pode ser consertado. Tem coisas que ficam quebradas e se curam sozinhas.
- Outras nunca se curam.

Botei o cinto de segurança. Um aviso. Zeca Baleiro cantava "ai-morena-viver-é-bom". Ele ligou o carro.

- Então acabou...
- Acabou.
- Tá com fome?
- Tô cansada.
- Então vamos.

"simples-e-suave-coisa-suave-coisa-nenhuma!" É. Acabou.

sobre não alcançar

sábado, 28 de novembro de 2009 às 08:11
Queria ser dessas que tem dinheiro para te comprar o presente ideal de Natal! Mas não sou. Ultimamente até estou pendurada no cheque especial. Até que surgiu a oportunidade do teu presente. Até porque você merece um presente. Me faz tão feliz...

O presente era simples. O tecido da camisa nem é muito bom, mas era o que meu dinheiro podia comprar. Escolhi o desenho mais fácil, pois estava começando a aprender, mas também o que você fosse mais gostar. Escolhi as cores que você gosta. E fiz. Tá, ficou borrado, um pouco tremido, meio torto. Mas não ficou um total desastre. Era o meu presente pra você.

E acho que presente ideal é assim mesmo. O que é feito por você desde o ínicio. Da compra da camisa, da escolha da cor e do desenho até o fazer ainda aprendiz. E me orgulhei disso. Ainda acho que você adoraria um perfume, mas vindo de mim, você gostaria dessa camisa manchada.

x

Queria ser dessas dramáticas de novela. Que rasga o presente e chora e maldiz a pessoa amada. Não rasguei. Chorar, até chorei. Mas deixei o presente lá, embrulhado, no fundo do armário. Vez ou outra vou dar uma olhada, sentir pena de tudo que aconteceu. Do desdém no "brincando de fazer alguma coisa...". No menosprezo do presente. Na insinuação da minha veleidade. E em todas as coisas que foram ditas e não apagam mais. Meu presente ideal subestimado antes mesmo de ser entregue. A recusa agora é minha.

Sabia que deveria ter comprado um perfume.

sobre o que é agradável

quarta-feira, 25 de novembro de 2009 às 10:53
uma quarta-feira de sossego. difícil de acontecer, sequer imaginar! olhei no relógio: 8 da manhã... eu estava acordada às 8 da manhã! assim sem motivo pra acordar. assim só por vontade. só pra não dizer que estava totalmente fora da minha rotina, fiz um café. enchi a xícara até o topo e pensei que ainda iria morrer disso: de tanto café. mas deixei pra lá... vinha uma brisa da varanda que lembrava vida, esse negócio de morte é filosofia demais para um dia tão sereno. vi a rede vazia sendo balançada pelo vento, como que me convidando. achei até que aquele momento dava uma poesia. como não sei fazer poesia, faço uma prosa. uma prosa muito informal e pouco poética. mas vai, é uma prosa... sem pretensões, por favor, hoje o dia permite. deitei na rede, acompanhada de um enxerido manhoso chamado cachorro. instalou-se entre minhas pernas, olhou pra mim como quem diz 'qual é? não vai empurrar não?'. mas é folgado, viu? e comecei a empurrar levemente a rede com um pedaço do pé. o ventinho vinha tranquilo e balançava o tecido leve do meu vestido. e eu olhei aquilo: xícara, cheiro de café, brisa, pelo fofo, balanço, vestido amarelo e... e... me surpreendi feliz. genuinamente feliz. sei que não é nenhuma fórmula da felicidade, mas eu estava, estava sim muito feliz. essas felicidades que você não se dá conta, que vem e vai muito rápido e só depois que passou, você percebe que era realmente felicidade. em toda sua fugacidade. e me deu um medo súbito de que aquela sensação gostosa autodenominada felicidade fosse embora. porque vai. sempre vai. e volta sabe se lá quando. foi aí que eu lembrei de você. não só das nossas tardes segredosas que fazíamos da rede um abrigo, mas simplesmente de você. de como a sua presença é sempre um indício de felicidade, de prazer, de júbilo. e não tive mais medo. pode ir embora, felicidade! pode ir se quiser. sei exatamente quando você vai voltar. e com quem vai voltar. e principalmente: que vai voltar. sabe, acho que felicidade é isso mesmo... a certeza louca daquilo que é incerto.



"(...) eu não tive tempo de dizer que quando a gente precisa que alguém fique a gente constrói qualquer coisa, até um castelo. até com a minha carne eu construía um cavalo branco para aquele príncipe." [ Caio Fernando Abreu ]

sobre o real

segunda-feira, 23 de novembro de 2009 às 19:43
Ela escolheu a camisa que ele usaria. Ele não usou. Ele elogiou seu novo vestido ainda guardado. Ela o usou. Ele critica sua mania de usar chinelos de borracha com qualquer roupa. Ela escolhe a cor do batom pensando se ele vai gostar.

Era a noite dele. Ele no palco, ela expectadora. Sozinha, mas atenta. Ela puxou uma cadeira o mais próximo possível do seu artista. Nunca confessou, nem bem confessaria, mas ela o queria ao seu lado, o queria como público, não como estrela.

Era ele a estrela daquela noite. E ela aceitou essa condição sem o menor esforço. Ela, que pouco brilhava, permitiu-se um orgulho materno. Mais: permitiu-se admirar sem qualquer euforia. Logo ela que era tão eufórica! Cruzou as pernas e deixou-se encantar.

Cantava ele com um prazer indescritível! E cada nota que tocava, mais bonito ele ficava... Como era lindo ! E ela não cansava de reparar: lindo! lindo! lindo! Ela o conhecia uma eternidade, mas nunca tinha achado ele tão lindo como naquele momento. Era música? Era amor.

O amor era tanto que se sentiu envergonhada por ter evitado aquele momento. Estava só, era verdade. E nenhuma circunstância a fazia gostar da solidão. Mas mais do que só, estava cativada. Estava inebriada por aquela música que só era música porque vinha dele. E não vinha pra ela. Mas ela fez sua. Secretamente.

A música acabou. E havia tantos adjetivos que ela guardou no cantinho da boca para dizer enquanto ele guardava os instrumentos. Ela não disse. Não pode dizer. Ele não ouviu. Não soube ouvir. Ela recusou a cerveja. Ele aceitou o jantar farto.

E eles foram embora. Com o não-dito escondido.


"Sim, afligia muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia tanto. "

meu lindo presente

quarta-feira, 18 de novembro de 2009 às 20:46
Porque nos encontramos sempre

Outra data, outro beijo em cortinas de lágrimas, refeita agora a sensação audível do estar encaixados em tardes quentes e pias frias. Encaixe pronto, pronta entrega, todo o suor exposto nas sobras de uma cama nossa. Refletidos, quatro de nós, um só corpo, entrelaçados entre esquadros de espelhos suspensos.
Essa data é nossa, sempre será nosso dia, segredo novo, experiência evoluída. Somos nós, ali no espelho, no box apertado, nas cartas mandadas ou não.
Somos retrato desenhado a anos, amarelo sorriso perdido e reencontrado em areias de lagoas de sal.
Nossa travessia, dura caminhada em pedras escaldantes. Nosso destino, banhos mornos fundindo corpos que se sugam.
Casa aberta, amor cumplice, abraços transcendentes, saltos de espamos, trovões que unem. Somo nós na mesma clara moldura eterna. Para Sempre.

"eu vou lhe dar um prato de flores e no seu ventre vou fazer o meu jardim. que vai florir..."



[ cadu carrasco ]

sobre sumir e não voltar

segunda-feira, 16 de novembro de 2009 às 16:56
A flor e o espinho
(Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha)

Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor

Eu só errei quando juntei minh'alma à sua
O sol não pode viver perto da lua

É no espelho que eu vejo a minha mágoa
É minha dor e os meus olhos rasos d'água
Eu na tua vida já fui uma flor
Hoje sou espinho em seu amor

sobre atravessar

quarta-feira, 11 de novembro de 2009 às 19:39
é bonita essa sua maneira de ver a vida. de ver nosso futuro. mesmo sendo eu a que usa óculos, você sempre foi o que enxergou mais longe. eu não sei mais ser sonhadora depois que o pesadelo aconteceu. e você sempre dizendo "pesadelos existem, não nego, mas os sonhos tão aí também. veja os sonhos!". não vi. não vejo. mas vejo as cores. o roxo, o amarelo... vejo as suas marcas de catapora no rosto. tão lindas. sei de cor cada marquinha até mesmo quando estamos longe. lembro quando você dormia no meu colo e eu ficava olhando, olhando, olhando... e em cada encontro, eu olhava fundo e era bom saber que elas ainda estavam lá, suas marquinhas de catapora. era como se nada tivesse saído do lugar, tudo estava em perfeita ordem. é, suas marquinhas no rosto eram o equilíbrio do mundo pra mim. estranho, né? estranho, meu amor, é a gente se unir se desunindo. é saber que do outro lado você está pensando em mim, com tanta intensidade e clareza, sem eu poder ver, sem poder sentir. é, eu sei. sei da sua dedicação. me é cara e quista. mas não vejo. não sonho mais, como canta o chico. são meus os teus sonhos. compartilho todos. mas é tanta estrada torta que eu me vejo seguindo, que sonhar é ilusão demais pra quem já não é mais criança. mas como é bonita essa sua maneira de ver a vida! eu sei que é.



“- Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há mais espúrio que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente.” [ Raduan Nassar ]

sobre defeitos

sábado, 7 de novembro de 2009 às 06:47
vou te contar: estou com uma saudade irracional de você. e confessar mesmo não confesso. talvez te ligasse bêbada no meio da noite boêmia, como já fiz tantas vezes e fui arduamente criticada. inconscientemente faria justamente por saber que você odeia minhas ligações ébrias. ainda mais quando tem barulho de vida do lado de cá. mas hen, ouça bem, eu ligaria e diria "sinto sua falta.", assim bem simples e pequeno, como tem sido minhas palavras pra você desde que descobri que a gente, sim, pode se acertar. e nos acertamos. e nos separamos. e nos xingamos. e nos maldizemos. mas nos acertamos. nos acertamos, né? pela incerteza, talvez mudasse meu discurso. procuraria 'amor' no celular - nunca mudei nem quando terminamos - discaria e diria "ei, como está? bêbada, eu? não, claro que não! não estou mentindo! na verdade, acho que estou um pouco sim... sabe que nem percebi? rsrs. mas então, não fica bravo, tá tarde eu sei, eu tô rouca, e falando torto, e o som tá realmente muito alto aqui do lado, mas ó... quê? não, não, estou com alguns amigos. quem? ah, os mesmos! me perder? espera, só queria te dizer que... não tá me ouvindo? gritar? mas eu tô sem voz! me dá uma chance de dizer que..." e acabaria o crédito porque você sabe que meus créditos são sempre pouco e eu enrolo demais pra chegar no objetivo final que seria "não estou mais perdida, eu me achei em você. e, de alguma maneira, você está em todos os lugares que eu vou. e quando você não está, eu te procuro incessantemente até te encontrar finalmente num copo de cerveja. sei que você não está aqui, e me dói demais esse aperto no peito que já passou de saudade pra necessidade, mas entenda, de alguma maneira você está! e não adianta eu querer me perder porque, eu já sei, eu me encontro sempre em você. mesmo que você não esteja aqui. e não está. vem, não me deixa desprotegida. vem... e vem depressa. porque daqui a pouco outro dia vai chegar e não sei mais quantos dias eu suporto sem seu cheiro. meu amor, minha devoção e meu carinho. todo pra você. beijos. tchau.". vou te contar: queria ser tão mais ousada...


'...às vezes digo coisas ácidas e de alguma forma quero te fazer compreender que não é assim, que tenho um medo cada vez maior do que vou sentindo em todos esses meses, e não se soluciona, mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o mesmo jogo e embora supondo conhecer as regras, me deixo tomar inteiro por tuas estranhas liturgias, a compactuar com teus medos que não decifro, a aceitá-los como um cão faminto aceita um osso descarnado, essas migalhas que me vais jogando entre as palavras e os pratos vazios...' [ caio fernando abreu ]

sobre fingir

domingo, 25 de outubro de 2009 às 21:47
a menina não entendia o desprezo. e fechou os olhos, bem fortes, pra tentar buscar no fundo da sua memória já desgastada - não pelo tempo, mas pelo esforço - o que teria feito para ele. onde pecou, a palavra derradeira do desdém, o gesto incerto, ou teria sido um erro de português num momento crucial? nunca soube conjugar certos verbos... a menina nada achou. em contrapartida, resolveu então achar algum motivo suficientemente coerente para desprezá-lo. odiá-lo, talvez. estaria ele a odiando nesse momento? desejou que sim. "que seja!", também o odiaria. e seu desdém iria ser ainda mais amargo. duvidou de si mesma, já que tudo que fazia era imperceptivelmente doce, mesmo que falso certas vezes. lembrou-se então de toda a curta história que tinham. da maneira como ele ria do seu sotaque arrastado. de como ele implicava com seus vestidos sempre tão curtos. ah, como ele ria engraçado quanto estava bêbado! era bom o cheiro dele de cigarro, perfume e alguma coisa que ela não conseguia identicar. devia ser amor. ele cheirava amor, embora ela nunca percebesse amor em nada mais nele. o lugar mais improvável de se sentir amor: pelo cheiro da pele. e ela sentia. e lembrou-se do roçar da barba dizendo "a gente se fala!". eles não se falavam mais. não sabia o motivo. por mais que no fundo, ela sabia, houvesse algum. a menina desistiu de odiá-lo. desistiu das desculpas, dos motivos, dos dissabores. tem lembranças boas dele. e são boas mesmo com o silêncio. serão boas mesmo com a distância. permanecerão boas com o tempo? não sabia. a menina não sabia mais porque nada disso estava acontecendo. mas sabia que foi bom ter acontecido. erro seu, erro dele. não importava. sua memória fraca sabe bem o que guardar.


"... porque mistério sempre há de pintar por aí." [ Doces Bárbaros ]

Um tesouro

terça-feira, 20 de outubro de 2009 às 22:40
Diálogo no Jardim do Palácio
[ Fernando Pessoa ]

A - O nosso pai e a nossa mãe foram os mesmos . Nós somos portanto a mesma cousa; somos um só, ainda que pareçamos dois? Ou não somos - e o que interveio entre nossos pais e nós para que pudéssemos ser diversos? O que é que me separa de ti? Estendo a mão e toco-te e não sei o que é tocar-te... Olho-te e não percebo o que é ver-te. Para mim és mais real do que eu própria porque te vejo todo, porque te posso ver as costas e não a mim... Para mim existo apenas de um lado... Oh, se eu pudesse compreender o que estou dizendo!

B - Que vês tu de mim? O meu corpo. Tu à minha alma não vês.

A - Mas nem a minha vejo, e ao meu corpo mal o vejo. Não o vejo como um corpo se deve ver para parecer real. Olho para baixo para ele, não olho para diante como para ver o teu. Se ao menos eu me sentisse sentindo meu corpo! Mas não me sinto dentro nem fora. Nem sou nem existo, o meu corpo. São - corpo e alma - qualquer cousa que eu não possuo. Ah! e quando nos espelhos que me reflectem me vejo de costas, andando, ou me vejo de lado - encho-me do terror do meu mistério. Sinto-me horrorosamente coexistir comigo [própria]. Ando atada a um meu sonho que sou eu. Quando me vejo de costas nos espelhos parece que tenho um outro ser, que sou outra cousa. Estranho-me por fora... Que horror que não possamos ver mais do que um lado do nosso corpo de cada vez. Que se passará do lado que não estamos vendo quando nós o não estamos vendo? Reparaste já que não podemos ver mais do que dois lados do palácio ao mesmo tempo? Que Deus se estará pousando sempre do lado para que não podemos olhar? Se tu soubesses como a minha vida é pensar nisto!

B - Ah, tudo isso não me perturba tanto como a minha voz, quando soa de mim e eu penso que não a criei, nem sei o que ela é, e a trago comigo como uma coisa minha. Falo e reparo nas palavras e no mistério de elas significarem. Nunca te escutaste? Tu nunca te escutaste? Mais do que ver-me de fora, o que os teus espelhos, ainda assim, te conseguem, eu queria ouvir-me de fora! Tapo os ouvidos às vezes, para ouvir a minha voz dentro de mim, e ouço apenas um sussurro, como se estivesse mais perto de mim, e começasse já a conhecer de quem é a voz que é minha. E tenho um medo que não me deixa continuar...

A - Ah, e os outros sentidos! A quem te sabes tu na tua boca? Que cheiras tu quando não cheiras nada? E quando tocas com uma mão no teu braço ou na tua face - pensaste já que a tua mão é que toca na tua face e não a tua face na tua mão, mantém a tua face sob a tua mão e será sempre a tua mão que toca, e a tua face a que é tocada.

B - Mesmo o toucar nas cousas - que estranho! Se eu tiver aquela pedra na mão, daí a pouco não a sinto já - parece que pertence ao corpo. Que mistério que é tudo! Andamos a dormir para nós próprios. Quanta alma durará o nosso sono?

(uma pausa)

A - Às vezes, quando penso muito adentro, sabe-me a que corpo e alma são uma cousa só... Parece-me então que realmente vemos as cousas de dois lados, que a alma das cousas é aquilo que nos parece que não vemos delas... Não, não é isto que eu te quero dizer... Vê, não sei pensar o meu pensamento!

B - Sim, compreendo o que não disseste. Mas o corpo não existe, talvez: é a alma vista pela [ ] de si própria.

A - Não. Não é assim. Não é assim. Mas eu não sei como é.

B - Vamos jogar, se quiseres, um jogo novo. Joguemos a que somos um só. Talvez Deus nos ache graça e nos perdoe ter-nos criado... Senta-te aqui, defronte de mim e chegada a mim. Encosta os teus joelhos aos meus joelhos e toma as minhas mãos nas tuas... Assim... Agora fecha os olhos. Fecha-os bem e pensa... e pensa... Em que deverás pensar? Não, não penses em nada. Trata de não pensar em nada, de não querer sentir, de não saber que ouves ou que podes ver, ou que podes sentir as mãos, se quiseres pensar que elas existem... Assim, amor... Não movas nem o corpo nem a alma...

(uma pausa)

B - O que sentiste?

A - Primeiro nada... Foi um espanto de ti e de mim... Depois que me esqueci de tudo, meu corpo cessou. Quis abrir os olhos mas tive um grande medo de os abrir. Depois cessei ainda mais... Fui pouco a pouco nem tendo alma. Encontrei-me sendo um grande abismo em forma de poço, sentindo vagamente que o universo com os seus corpos e as suas almas estavam muito longe. Esse poço não tinha paredes mas eu sentia-o poço, sentia-o estreito, circular e profundo. Comecei então a sentir o grande horror - ah, eu já não poder senti-lo! - é que esse poço era um poço para dentro de si próprio, para dentro não do meu ser nem do meu ser poço, mas para dentro de si próprio, nem sei como.

B - Depois? Depois?

A - Depois desci... Encontrei no pensamento uma dimensão desconhecida por onde fiz o meu caminho... É como se abrisse no escuro o vácuo, O súbito pavor de uma Porta... Assim no meu pensamento uno, vácuo abstracto, uma porta se abriu, um Poço por onde fui descendo. Compreendes bem, não compreendes? Foi no pensamento todo abstracto e sem diferenças nem fins, nem ideias, nem ser, que um Poço se abriu... E eu desci, ao contrário do que se desce - ao contrário por dentro do ao contrário...

B - Continua, continua...

A - Desci mais, sempre mais... e sempre nessa nova direcção. Mas... (ajuda-me a poder dizer isto!). Oh, que horror! que horror o que estou sentindo! Arrancam-me a alma como os olhos para não ver! Sabes o que eu sinto? Sinto-me como se o visse - como se o visse e aquilo nem pensar se pode! Ah, agarra-me, tem-me nos teus braços! Aperta-me! Aperta-me tanto que o teu braço me magoe.

B - Não quero, não quero... Tu não sabes o que senti!

A - Não ouso querer não o ouvir... Mas tenho medo...

2º - O nosso amor é parecido com o sonho porque não é senão a superfície do amor: O meu amor é impossível como realidade, possível só com amor. Cada um de nós, no nosso amor, não ama senão a si, no amor; sonha em voz alta e é ouvida. Sonha com o corpo, com os beijos, com os braços.

1º - Dir-lhe-ei que o não amo. Que melhor amante que tu? És mulher como eu e amando-te é a mim que me posso amar.

2º - Realizar o amor é desiludir-se. Quanto não é desiludir-se é acostumar-se. Acostumar-se é morrer. Por mim só amei na minha vida, e amo, a um estrangeiro de quem não vi mais do que o perfil, a um cair de tarde, quando estávamos numa multidão.

1º - Mas ele sabe que o amas? Se ele não sabe que tu o amas de que serve amá-lo?

O meu amor é o meu e está em mim e não nele. Que tem ele comigo senão que o amo? Se eu o conhecesse a nossa primeira palavra seria a nossa primeira desilusão... Valerá a pena amar o que podemos ter? Amar é querer e não ter. Amar é não ter. O que temos, temos, não amamos.

A - Se, apesar de tudo, nós nos amássemos!

B - Não, agora já não pode ser. Descobrimos num momento o que os felizes atravessaram a vida sem descobrir, e os mais infelizes levam muito tempo a achar. Descobrimos que somos dois e que por isso não nos podemos amar, Descobrimos que não se pode amar mas só supor que se ama.

A - Ah mas eu amo-te tanto, tanto! Tu se dizes isso é porque não imaginas quanto eu te amo.

B - Não, é porque eu sei quanto tu me não podes amar... Escuta-me. O nosso erro foi pensar no amor. Devíamos ter pensado apenas um no outro. Assim, descobrimo-nos, despimo-nos da ilusão para vermos bem como éramos e vimos que éramos apenas como a ilusão nos fizera. No fundo não somos nada senão Dois. No fundo somos uma epopeia eterna - o Homem e a Mulher...

A - Oh, meu amor, não pensemos mais, não pensemos mais. Amemos sem pensar. Maldito seja o pensamento! Se não pensássemos seríamos sempre felizes... Que tem quem ama com o saber que ama, com pensar amor, com o que é o amor?

B - Não podemos deixar de querer compreender. Quanto mais penso em tudo, mais tudo se me resolve em oposições, em divisões, em conflitos! Mataste de todo a minha felicidade! Agora mesmo que eu quisesse sonhar, nem isso podia fazer. O mundo é absurdo como um quarto sem porta nenhuma... Que alegria se não pensássemos, e que horror o havermos pensado!

A - Agora podemos sonhar... Vem. E não penses mais, não olhes mais para o amor.

B - Não... Agora é impossível. Podemos não pensar, mas não esquecer que pensámos... Sejamos fortes e separemo-nos agora para sempre. Oxalá nos possamos esquecer e esquecer que sonhámos o amor e vimos que ele era uma estátua vã... Olha, tolda-se o céu... Levanta-se o vento. Vai chover...

A - Já não ouso dizer-te que te amo, mas amar-te-ei sempre. Tu não me devias ter amado... Tu...

B - Nada devia ser comigo é... Fomos infelizes, mais nada. A curva desta estrada foi tal que dela vimos o amor e não pudemos amar mais.

A - Tu não me amaste nunca. Se tu me tivesses amado, tu não podias dizer isso. Se tu me tivesses amado tu não pensavas no amor, pensavas em mim. Sim, agora está tudo acabado, mas porque entre nós nunca houve senão o meu amor. Amaste-me talvez porque pensaste que eu te amava ou que te devia amar. Não sei porque me amaste, mas não foi por me teres amor... Porque me olhas assim tão diferente e alheado?

B - Porque reparo agora em quão pouco sabemos do que somos, do que pensamos, do que nos levas. Subiu-me agora à compreensão o que tudo isto é de complexo e absurdo. Não nos podemos compreender. Entre alma e alma há um abismo enorme. O que nós descobrimos afinal foi isso: eu vejo-o e tu não o queres ver. Mas eu descobri mais, ao reparar que não sei o que devo fazer - é que entre nós e mim próprio se abre um abismo também. Andamos como sonâmbulos numa terra de abismo.

A - Adeus, sê feliz e esquece-me. Não te demores que chove mais. Na curva da estrada há uma árvore grande onde te abrigares. Vai depressa, vai depressa. Chove mais.

Quando você chegar

segunda-feira, 19 de outubro de 2009 às 00:51
Ainda e sempre

Acho graça do teu medo
Nossos riscos na janela
Nosso sonho não é segredo
Nada apaga a nossa vela
Não depende do sucesso
O sucesso é ele assim
Livre, sendo assim não peço
Pego sol pr’ocê e pra mim
Nossa casa ainda é o mundo
E o teu filho vai com a gente
Cada vez é mais profundo
Eu não quero ser serpente
Nós seremos gaivotas
Pra riscar de leve o céu
Que nos chamem de idiotas
Pretensão, queimei teu véu
Nosso som é pra quem quer
Nosso verso é pelo amor
Vai andando onde quiser
Vai por mim onde eu não for
Sou o trem, você é o trilho
Tua risada afasta o mal
Nosso amor ainda tem brilho
Eu vou ver o teu sinal
Mais de trinta anos vão
Onde o tempo quis levar
Como o tal do pescador
Mais com a rede que com o mar
Canto, canto e é só cantar
Por você não desafino
Fiz da tua flauta o lar
Fiz da tua risada um hino

[ Oswaldo Montenegro ]


Pra você, meu pulcro poeta.

sobre esperar

domingo, 18 de outubro de 2009 às 12:40
é, boy, a vida é negra. você aceita um pouco de vodka? eu também não bebo vodka, mas hoje eu quero que o amargo da garganta esconda o amargo da vida. essa coisa de decepção e tudo o mais. dizem por aí que o desamor é mais saboroso, por ser cruel. eu não sei. tu sabe? eu, até hoje, só provei do amor. aquele desmedido, insano e feérico amor. não sei porque ainda o elevo, foi ele quem me trouxe aqui. nesse bar sujo no meio da madrugada. me fazendo tomar uma bebida que eu nem gosto. me fazendo dizer coisas pra quem eu nem conheço. eu te conheço? então, prazer. tem certeza que não aceita um pouco de vodka? se você está aqui, a essa hora, é porque existe alguma coisa amarga lá fora. tome! beba um pouco. no exato momento que ela chegar na sua garganta você vai esquecer todo o poço fundo que é o mundo. é negra a vida, pode ter certeza, amigo. quê? se eu tenho medo da madrugada? tenho medo da espera. é ela sempre o meu maior medo. a espera de um telefonema que poderia mudar sua vida, nossas vidas e que não veio. não quero ser esquecida! quero depois das chuvas de palavras duras, um pouco de carinho, quem sabe um cafuné na cabeça. não quero esperar mais. senta mais perto! conte seus problemas. o meu já se resume estar aqui. esperando qualquer porta se abrir nesse abismo escuro, por vezes um pouco iluminado, chamado amor. não dizem por aí que o desamor é mais gostoso? eu já disse isso? acho que já foi vodka demais pela garganta... acho que já esperei demais essa porta que nunca se abre... vou pular as janelas, querido. tem perigo? será que tem?



“Então eu te disse que me doíam essas esperas, esses chamados que não vinham e quando vinham sempre e nunca traziam nem a palavra nem a pessoa exata. E que eu me recriminava por estar sempre esperando que nada fosse como eu esperava, ainda que soubesse.”

sobre caminhos

quinta-feira, 15 de outubro de 2009 às 16:34
seria trágico se não fosse tão belo. me queira bem! te pedi com força. me queira muito bem, te quero tão bem nesse instante! mas você se foi. não te queria meu, te queria claro. te queria me querendo bem. me desejando caminhos longos e floridos. me mandando beijos muitos, aos montes e ao acaso. me enviando cartas com boas novas e uma pitada de saudade. me queira bem, por favor... todo mal que lhe causei, a dor é toda minha. e mesmo a dor que lateja nos dias de chuva forte, mesmo a saudade que queima nos dias que são noite, mesmo assim te quero bem em demasia. não te quero como te quis, não te quero só meu, não te quero perdido. te quero rindo. te quero escrevendo poesias em caneta nanquim. te quero tão bem que até me esqueço do que você não quer. e às vezes dá vontade de te ligar de madrugada e dizer que meus sonhos são todos teus. é por te querer bem que te imagino nos meus devaneios noturnos. é por te querer bem que te procuro nas ruas, esquinas, becos, é só pelo bem querer que nunca te encontro. e por não te encontrar, acabo ficando aflita e faço preces pra deuses que não acredito. pedindo só e somente só que você fique bem. que você não se perca de mim. ei, me queira bem? pois eu te quero tanto, tanto e tanto que já nem sei dizer. te quero bem. mesmo distante, mesmo triste. ah, te quero bem... pode acreditar.


"Tu pouco dás quando dás de tuas posses. É quando dás de ti próprio que realmente estás dando. É belo dar quando solicitado; é mais belo ainda dar quando não solicitado; dar por haver apenas compreendido." [ Kahlil Gibran ]

sobre ir embora

segunda-feira, 12 de outubro de 2009 às 15:23
pegue aqueles nossos segredos e leve embora. leve o livro do desassossego do pessoa que eu pedi que você me desse, mas nunca deu. está aqui em casa faz muito tempo. mas não é meu. pode levar! leve também toda a sujeira dos meus pés descalços! você com essa mania de chinelos, eu com minha mania de andar no chão gelado. agora você não vai reclamar mais quando eu sujar o lençol com a poeira do dia. leve a caneca de café. não precisarei mais fazer café de madrugada para te dar o colo dos dias difíceis. a caneca já puida de tantas vezes ter sido atirada na mesa, lembra as vezes que você com raiva a derrubava me acusando de estar mentindo? leve também minhas mentiras pra você tão claras! pra mim ainda quase pinturas. quase espelho. quase caminho. leve também o guarda-chuva. nunca fui de usar. leve consigo que eu vou ficar bem sem você reclamando as vezes que cheguei em casa ensopada. você nunca entendeu que eu gosto de me molhar. leve as chaves, pode levar, não precisa devolver. se você sentir saudade do cheirinho de incenso de cânfora, pode chegar. pode entrar sem chamar. se estiver deitada, pode pegar amendoim no potinho da cozinha. não esqueça de trancar as portas. nunca fui de trancar, né? eu usava você como proteção. mas agora feche bem. dê duas voltas, três se puder. e leve tudo que não puder deixar. e deixe tudo que esqueceu levar. mas volte. nem que seja de surpresa.


"Nada pesa tanto como o afeto alheio." [ Fernando Pessoa ]

sobre se perder

quarta-feira, 7 de outubro de 2009 às 15:40
você me invade inteira. me invade abrindo portas e janelas provocando aquele barulho de madeira contra parede. me invade como um vento forte que vem com cheiro de chuva. me invade com força e o vento que vem tem cheiro bom. tem cheiro de coisa nova, de coisa bonita, de coisa inesperada. e eu esperava você há tanto tempo que nem sabia que essa ânsia que vivia em mim era sua espera. e era. era uma espera que não cabia mais dentro de quem tem essa vontade de que tudo aconteça logo. e aconteceu em mim essa coisa toda sem nome e sem destino. e você me virou do avesso como quem tira uma roupa do corpo. me mostrou cores minhas que eu nunca tinha visto. me mostrou órgãos meus que eu não sabia que trabalhavam por mim. e trabalhavam. e faziam de mim alguém cada vez mais distante daquela que fui há alguns segundos que se passaram. e passaram. e estão passando... e corro atrás deles desesperada como quem perde algo irrecuperável. e não consigo nunca recuperar suas palavras desvairadas. você me traz uma volúpia proibida. e me proíbe sempre de te escolher entre eles, como quem escolhe no varal uma roupa pra sair. e quando se puxa entre os pregadores, a roupa amassada, porém limpinha e cheirosa... ah, tem cheiro bom de coisa nossa! te escolho entre aquele rosa desbotado e aquele verde listrado. te escolho entre o as de copas e o rei de espadas. te escolho antes mesmo de saber os outros sabores do cardápio. te escolho sempre, embora você me negue. e você me busca de uma maneira sua e ri quando auto-intitula sua procura por 'desvarios'. que seja nosso esse seu delírio. que seja meu esse nosso destempero. e é.


"São precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência". [ Milan Kundera ]

quem não tem pra quem se dar, o dia é igual a noite

segunda-feira, 5 de outubro de 2009 às 19:27
ele chegou. reconhecia aquela camisa. preta com a coroa dourada. lembra-se muito bem dela. foi a camisa que usou na primeira vez que se viram. o encontro mais esperado, desejado, planejado e, portanto, o mais frustrante. o cabelo estava curto, esperava mais longo por sinal de rebeldia. ele sentou-se. não disse nada. não cumprimentou. não a beijou na bochecha. só sentou. e ficou olhando.

- não sabia que você fumava.
- você não sabe de muitas coisas...
- passou a fumar quando?
- quando você me deixou.
- humm, influência de quem? da faculdade? dos amigos boêmios, dos filmes europeus?
- vamos começar a nos atacar? são quatro anos sem nos ver...
- quatro anos de silêncio merece um certo ataque.
- não estou em posição de defesa. quer beber alguma coisa?
- quero saber porque você me chamou.
- sabia que viria ao rio. vi no seu twitter.
- ainda procurando por mim?
- jamais deixei de procurar por você.
- foram quatro anos de silêncio.
- foram três anos de história.
- que eu fiz questão de esquecer...
- se esquecesse não estaria aqui.

ele pediu uma cerveja. eu pedi uma tequila. eu olhava pro cinzeiro. ele olhava pra mim.

- você continua a mesma. o relógio do lado errado, no braço direito. a tequila de sempre. até o cabelo é o mesmo, embora mais cacheado.
- você anda bem diferente. embora seu sorriso esteja o mesmo.
- eu ainda não sorri.
- nem precisa. é o mesmo. eu sei.
- não deveria ter vindo...
- a gente não evita a queda, depois que escolhe se jogar do abismo.

ele riu. sarcástico e ácido. como de costume. não era sua personalidade, mas passou a ser seu escudo depois que as coisas começaram a dar errado.

- e você, continua devorando os corações dos homens que passam pela sua vida?
- e você, continua se escondendo no meu coração devorador de homens?
- consegui me livrar disso...
- hummm, consegui me livrar também.
- sozinha?
- sozinha.
- acompanhado.
- humm, uma surpresa. você que sempre prezou a solidão.
- as coisas mudam... embora meu sorriso fique o mesmo.
- é, outras ficam, embora meu cabelo esteja mais cacheado.

ele percebeu que eu estava segurando o choro. ele percebeu que eu estava desconfortável e não passava mais a mesma segurança do ínicio do encontro. ele pegou o cigarro da minha mão.

- pare de fumar. vai lhe fazer mal!
- nada pode me fazer mais mal do que o que você já me fez.
- eu estava furioso.
- eu estava frágil.
- já passou. foi há quatro anos.
- não passou. suas palavras perduram por muitos anos.
- desculpa.
- você não é de pedir perdão...
- você não é de fumar...

eu evitava olhar. ele evitava deixar transparecer. eu não conseguia suportar. os olhos não conseguiam mentir. ele não sabia como agir.

- tenho que ir. o metrô fecha às 11.
- tá.
- e dos três anos que tivemos juntos, o que ficou?
- nada. pra mim não ficou nada.
- é, nem pra mim.
- mentira sua.
- é, eu sei. toma, esse livro guardei pra você. pra não perder o costume.
- obrigado. não vou aceitar. não quero nada seu.
- não é mais meu. foi dado. agora é seu.

eu deixei em cima da mesa. e saí andando. chorando. ele pegou o livro. e foi atrás.

- posso te pagar mais uma tequila?
- posso fumar mais um cigarro?

ele riu.

- é, seu sorriso continua o mesmo.
- e seu cabelo está muito mais bonito cacheado.

"chegou-se a discutir qual a metade mais bela. nenhuma das duas era totalmente bela. carecia optar. cada um optou, conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia."

[ carlos drummond de andrade ]

Branco e preto

sexta-feira, 2 de outubro de 2009 às 22:18
hoje não chorei por você. cortei o cabelo, eu mesma, em casa, com uma tesoura cega e sem ponta. ficou bonito. pela primeira vez não te perguntei o que achou. nem senti vontade.

hoje não peguei seu casaco. abri o armário, escolhi a roupa, olhei no fundo o casaco dobrado. era seu. emprestado com todo zelo. mas não peguei. sempre que abria o armário, eu pegava e abraçava e cheirava. tinha cheiro de amaciante. mas eu fingia que tinha cheiro seu. não peguei. não pego mais.

hoje não falei de você. contei pra eles do tombo que levei e mostrei rindo o machucado na perna. contei do absurdo que me cobraram de conta de telefone. contei até da manchete do jornal de hoje, que me deixou indignada. mas não contei de você. não falei dos expurgos que precisei depois dos seus brados. não falei de você. pela primeira vez não te mencionei.

hoje pensei em você. no ônibus. na fila do bandejão. na aula de filosofia. amanhã vou pensar em você. e daqui há 13 anos, quem sabe... estarei pensando em você. mas não quero te mais.

hoje não te quero mais. e ponto.

"Quando existe alguém que tem saudade de alguém
E este outro alguém não entender
Deixa este novo amor chegar
Mesmo que depois
Seja imprescindível chorar"

[ Tom Jobim ]

Dialética

terça-feira, 29 de setembro de 2009 às 21:14
Sentei na cadeira do ônibus e vi um jornal. Há quanto tempo não lia um jornal! Peguei-o e estava escrito O GLOBO. Primeira página: "Sociedade aplaude policial." Ah, era aquela história do atirador que matou o assaltante que fazia uma mulher como refém. A manchete me fez rir. Sociedade aplaude? Alguém me entrevistou pra saber se eu aplaudo? Pelo que saiba eu faço parte da sociedade... Mais embaixo havia uma foto de um expectador do assalto que estava batendo palmas. Talvez ele tenha aprovado. Mas ele é a sociedade? Aquela foto representa a sociedade? Do lado direito tinha a foto dos filhos da refém beijando-a e ela sorridente dizendo "Ainda bem que o mataram, tenho filhos e uma vida!". Acho que o jornal esqueceu de considerar que o assaltante também tivesse uma vida. Quem sabe filhos. Fui saber logo depois que ele tinha uma mãe que ficou inconformada por ele ter morrido. Disse ela que ele procurava emprego há muito tempo e não achava. Estava frustrado. Nada justifica o crime, mas... Por que a dicotomia entre o bom tem que viver e o mal tem que morrer? Porque a dona da farmácia de classe média, com filhos, sorriso branco tem que viver em contraste com um cara negro, favelado e sem emprego? Por que ele não tem o direito de viver assim como ela? De se arrepender pelo erro? De se tornar uma pessoa diferente (melhor é pretensão demais!)? A sociedade aplaude mesmo atirar na cabeça de uma pessoa mesmo que haja motivos (motivos para repúdio, não motivos para morte, nunca há motivos para morte)? Fechei o GLOBO. Saltei do ônibus. Joguei no lixo. Outra pessoa poderia pegar e ler e achar que as palmas daquelas pessoas eram suas próprias palmas. Não são. Talvez não sejam. Tomara que não sejam.

Não existe último

segunda-feira, 28 de setembro de 2009 às 22:13
Eu me escondia nos teus erros. Faziam meus teus tropeços. Me perdia nos abraços que tu te recusavas a dar. E fazia deles meu porto, mesmo estando quase sempre à deriva. Te pedia o limitado e lhe dava o infinito. E quando o infinito conquistado, te dei a reticência dos meus medos. Sei lá, não sei falar de nós que não seja na abstração. Não sei te querer menos mesmo quando estas sem razão. Te prometi a tequila e a entrega, me prometestes o vinho e a música. Do prometido, ficou o profanado. Tua cigana tem razão: não fomos feitos um para o outro. Talvez nem tenhamos sido feito de barros tão opostos. Quem sabe tua estrada distante não tenha sido, desde o início, o sinal do presente? Sei lá, tua poesia já não faz mais sentido pra mim. Acho que estou até me esquecendo do som da tua risada. Apesar de todo dia, ao fechar os olhos, me lembrar da imagem muda do teu rosto. Tuas lágrimas não eram tão salgadas quanto as minhas. E aquele desvelo que me atirei, não foi o mesmo mar que te atiraste. Já estou com sono. E no meu céu claro e estrelado, tu és minha trovoada. Sei lá, não sei se me escondo, não sei se me mostro nua e fraca. Não sei mais. Sei lá.


"Toda taça tem no fundo seu veneno." [ Raduan Nassar ]

A pior

domingo, 27 de setembro de 2009 às 11:34
“Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tudo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse ao meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí."

[ O inventário do Ir-remediável ]

... e agora eu era um louco a perguntar "o que é que a vida vai fazer de mim?"

domingo, 13 de setembro de 2009 às 20:37
só tinha levado uma calça jeans e o sol das 10 da manhã estava muito forte. a cidade era nova, mas ela conhecia bem as oscilações de temperatura. noite fria a de ontem. fria no abraço alheio, fria no interior do lençol emprestado. fria. em todos os sentidos. não queria lembrar. não queria mais disfarçar os olhos vermelhos debaixo dos óculos. tirou os óculos e sentou perto de uma árvore. eram quatro bolsas que levava mais o colchonete. suas costas doíam. o jeans a fazia suar. a sombra era boa. ficou.

andava novamente em direção ao ponto. estava longe. nem sabia ao certo onde era. se passaria ônibus. se voltaria pra casa. não sabia ao certo que viera fazer ali. não, se contradisse! sabia sim o que a fizera estar ali e sentiu-se tola demais ao relembrar. estava indo sem se despedir. de ninguém. estava indo fugitiva, perdedora de guerra. não sabia nem porque estava indo. mentira! sabia sim. não queria lembrar. onde estão os óculos mesmo?

chegou no ponto, mas sentiu que não ia conseguir sem se despedir. e sentiu, mais ainda, que se despedir era um erro. inconsequente que era, errante desmedida, guardou o saco do colchonete por entre uns arbustos para não condenar sua fuga. e foi. foi para o último momento. encontrou-o. e quis dar o abraço mais apertado e saudoso. não deu. os outros abraços não foram bem quistos. mais alguns também poderiam não ser. era medrosa, sabia bem. queria ter dito "cuide da garganta, viu?". não disse. não conseguia dizer. o que disse mal lembra. comprei uma camisa do 'pão e rosas' pra você. não dei. não fazia mais sentido.

voltou ao ponto, dessa vez com o erro consumado. chorava tanto que mal via os ônibus que passavam. passaram muitos ou poucos. não sabia. foi andando mesmo assim. pra sabe se lá aonde. em algum momento parou de chorar. não lembra qual. mas parou.

e se foi. "nunca" e "pra sempre" não existem mais.

"Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva". [ Caio Fernando Abreu ]

conto sacro

segunda-feira, 7 de setembro de 2009 às 18:31
a menina não queria fugir. e entre todos os momentos que temia, era este o crucial. era este, enfim, o minuto mais ansiado. havia um espaço pequeno entre as bocas. espaço este, suficiente para se fazer anunciar um beijo. o barulho era alto. mas inaudível. as pessoas muitas, suadas, e espalhadas. espremendo-se nos seus próprios corpos dançantes. o lugar era quente, mas o suor das mãos não vinha dele. vinha do outro. não havia cheiro, mas ela sentia perfeitamente, quase como se existisse, o cheiro do desejo. e se era desejo, era vontade. e a menina não escondia o sorriso. sorria num regozijo só dela. egoísta e infinito. o momento ainda durava, por mais curto e paradoxal que pareça. e parece! mas ela não ligava. a menina soltava todos os músculos retidos. deixava os medos, todos eles, irem embora numa cavalaria invisível. e eram os olhos dele, tudo que via. e eram doces. e cada vez mais próximos. e fechados, celebraram os lábios o beijo atrasado. o beijo postergado. o beijo de meses, de uma vida. o beijo dos contos de fada. só que num conto libertino. a menina se perdeu naquele toque macio de bocas juradas. não havia mais pra onde fugir.

mas a menina queria fugir. cada vez mais.

Quantas voltas?

segunda-feira, 24 de agosto de 2009 às 19:12
se um dia eu fosse capaz de te perdoar, eu te perdoaria. e te mandaria aquela carta que escrevi e selei, mas que nunca cheguei a enviar, mesmo passando todos os dias em frente à caixa de correio. e te presentearia com aquela surpresa que fez, indubitavelmente, lembrar-me de você. e te compraria muitas outras porque vale sempre a pena te ver sorrir. e você sempre sorria quando eu chegava e tirava da mochila resquícios da minha terra do mar. eu te contaria uma piada que teria aprendido uns dias antes numa mesa de bar só pra... novamente te ver sorrir. e te abraçaria forte e comentaria o tamanho da sua barriga pra... por que não? te ver sorrir mais uma vez. e se não bastasse todos os sorrisos, eu diria eu te amo, que na verdade sempre te amei, e que o que passou foi só insegurança e medo, havia, ah sim, havia sim, era muito amor e era só teu, só pra dessa vez te fazer... chorar. e mesmo que você não chorasse, eu te abraçaria mais uma vez só pra você sentir toda minha dor e toda minha carência naquele abraço que só você entenderia. mas nunca entendeu. e eu te chamaria para tomarmos aquele sorvete delicioso, e rápido, chamaria você correndo, antes que o sol se posse e o calor da sua cidade que recebe mais raios solares fosse embora e o sorvete ficasse sem essência. eu te mostraria no rádio portátil, mp3, mp4, celular, seja lá o que tivesse no momento, aquela música que eu sabia que você iria adorar. e você sempre adorava. e não contente, pediria com toda manha que me cabe, que tocasse ela pra mim. não o dia todo. que tocasse de noitinha. que tocasse de surpresa. que tocasse só pra mim. depois do pedido, te pediria mais, um pouquinho mais e você me prometeria dar. nunca dava. te perdoaria, se pudesse. mas não posso.



"E eu na minha descrença, te devolvo a existência." [ Raduan Nassar ]

O teu amor é uma mentira que a minha vaidade quer

sábado, 1 de agosto de 2009 às 17:55
"Nos perdemos na nossa hipocrisia. Não, não estou filosofando, nem querendo tornar o nosso fim mais romântico. Não há nada de bonito no que estou dizendo, e a sinceridade que nunca tive que seja agora meu presente. Sim, nossa hipocrisia invisível nos fez lobos, leões, raposas, ou qualquer coisa assim selvagem, nos fez ferozes nas nossas próprias escolhas, nos nossos próprios julgamentos. Não me julgue! Você não é o dono da verdade! Quê? Eu também não sou! Aliás, tudo que consegui ser com você é o não-ser, não ser nada que já fui. Não, já disse! Não estou filosofando. O fim está próximo e tudo que quero é mostrar que entender é inútil. Mas eu preciso entender, tá escutando? Não faça essa cara de quem não acredita. Acabou sim! E está tão evidente que o fingir não perceber não funciona mais. Nunca funcionou? É, tem razão, se tivesse funcionado não estaríamos terminando agora. Ei, não diga essas coisas! Por mais que o momento seja de revolta, não merecemos essas palavas ácidas. Quê? Ah, não diga isso. Não sou falsa e nem... Por que você me chamou disso? Nunca fomos de nos ofender! Eu não escondi nada de você, mas tem coisas que são profundas e é difícil passar da superfície. Sabe um lago que tem a superfície congelada, mas é só uma camada e embaixo tem um mar azul e cheio de peixes? É isso! Eu não consegui passar pela minha camada de gelo para entender todas essas coisas que estou te dizendo agora. Não, o subjetivismo é importante, não me culpe por ele! Me deixe tentar explicar que... Não grite comigo, por favor. Estou tão frágil, parece que Vênus está me regendo essa semana. Não me faça chorar. Eu só quero que seja tudo muito bem explicado. Só quero que você compreenda que o amor, assim como os sonhos, não possui lógica. E não adianta você me culpar por ter ultrapassado os limites que criamos. Limites só existem pra serem ultrapassados! E por mais que doa, e dói!, não há como escolher não fazer escolhas. E a minha escolha agora é... Ei, não me vire as costas! Eu queria te desejar... Não, espera. Tem tanta coisa bonita que eu quero que você descubra... Você não volta? Não me queira tão mal assim, por favor... Ei, não esqueça de... É... Adeus."



"Tudo o que sabemos do amor, é que o amor é tudo o que existe." [ Emily Dickinson ]

Os pecados são todos meus

domingo, 12 de julho de 2009 às 23:59
Era tempo de limpar as gavetas. Uma a uma. Mas resolveu começar pela velha gaveta de badulaques. Aquela que guardava o sonho de uma vida melhor. De amores antigos. De doces lembranças.

Ali mesmo, vendo o amálgama de coisas que guardara. Viu que não possuía amores antigos. O que possuía era o mesmo amor partido em muitos outros. A mesma pessoa que amara, fazia anos, três, quatro? Quantos mesmo? Perdeu a conta... Esse mesmo amor que de tanto se transformar se perdeu na sua origem... Que palavras de outrora ainda perduram no fogo singelo de hoje?

Olhe... aqui no fundo... A primeira carta. A única, porém a mais importante que já ousou receber! Veio junto, como um presente merecido, um desenho especialmente tecido. Foi por tantos anos seu principal papel no quadro de seu quarto! Era lindo. E a carta, não ousou reler mais. Andava fraca do coração... Mas não se esquecia que era linda e trazia uma contagem regressiva para o dia que seria o primeiro encontro.

Ah, o primeiro encontro... Aqui está, olhe só! O bilhete da passagem pro dia 20 de janeiro de 2007. Guardadinho... O dia em que mais suou de nervoso na vida. Como desejou dentro daquele ônibus frio ser quem ele esperava! Como pediu para que aqueles dias, onze dias, nunca acabassem... E não acabou. Está dentro dela! Mais vivo que nunca. Sim, perderam-se pelo caminho, mas as lembranças guardadas na gaveta do seu quarto, jamais se perderam também na gaveta da memória.

E o anel feito de sonho de valsa. Chora não, menina! O pedido de casamento foi para que nunca se esquecesse como é bom ser desejada a ponto de ser ir além. Foram além. Foi-se o além. Mas está ali. Aquele anel dado sem bonitas palavras, mas com o ardor dos olhos negros. Os olhos negros... achou ela, no meio de uma antiga caixinha uma foto da sua viagem para cá. Ainda cheia de areia da praia, a foto trazia o amor que ninguém nunca viu, mas que eles sentiram como se fosse a razão de tudo. E era. Viveram por ele. Mesmo que, mortos, os dois andem a procurar o que restou. "Que lindos cachos eu já tive só pra mim..." Eram lindos, como de anjos.

E como um anjo que pede um sorriso... o livro. Um livro com uma dedicatória que não fala de amor, mas fala do que jamais vai se apagar: uma linda história. "Uma história extraordinária", ele escreveu. Como ela se agarrou a esse presente na fria viagem de volta! Como queria que ele fosse a salvação do mistério do desprezo que ela se afogava!

Fechou a gaveta. Não podia e nem queria jogar fora aquelas lembranças! Seriam elas a cura de feridas criadas pela incompreensão? Acendeu um cigarro e pensou que seria o momento ideal para o telefone tocar. Diria "eu te amo" de uma maneira visceral que sairia mais como um grito do que como um lamento. Diria "não me deixe nunca!" como uma súplica de quem não quer se deixar morrer. Diria tanto e muito que não ouviria a pergunta do "vai ou não vai em tal lugar?" porque não queria ouvir perguntas, queria ouvir as afirmações mais apaixonadas que durariam madrugadas de muitas confissões.

Diria...

Todo o meu subjetivismo

quinta-feira, 9 de julho de 2009 às 13:57
"Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa da sua feiura. (...)"

[ Leite Derramado / Chico Buarque ]

Carta rasgada

segunda-feira, 22 de junho de 2009 às 19:08
vou-me embora porque te amo. não, não é tão paradoxal quanto parece. na verdade, é bastante claro como jamais fomos. são com minhas palavras duras, dessas que repudiava de ti e com meu silêncio pouco austero que te incito a me odiar. se com teu amor, ainda criança, ainda ingênuo, ainda preso, encarcerado, eu não consigo ir além. será, pois, com teu ódio que crescerei errante. como uma erva daninha. "no teu jardim, me fiz florescer.", lembra-te? agora, murcha, peço que me arranque pela raiz. jardim tão verde, tão bonito, tão garrido... plante rosas dessas bem coloridas, pintadas por tuas mãos tão talentosas, para que cubra o passado do inverno rigoroso que fui. que sejas um jardineiro bem mais empenhado e se não fores, que haja plantas muito resistentes e vistosas para que tu sintas gosto em acordar todas as manhãs. vou-me embora, já é hora. beleza igual a tua, não hei de achar. nem por aí saio a procurar, fique certo. que tuas mãos estejam sempre quentes. e tua memória sempre viva. e não esqueças que as noites de trovões serão sempre tuas. como um dia, com zelo já esquecido, você as tomou por direito. vou-me agora. e fique onde, porventura, nunca haverá de sair. fique. e deixe-me ir. ir. fique. vou. vá. fico. tchau.


"Talvez um voltasse, talvez o outro fosse. Talvez um viajasse, talvez outro fugisse. Talvez trocassem cartas, telefonemas noturnos, dominicais, cristais e contas por sedex (...) talvez ficassem curados, ao mesmo tempo ou não. Talvez algum partisse, outro ficasse. Talvez um perdesse peso, o outro ficasse cego. Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos, talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro, ou viajassem junto para Paris (...) talvez um se matasse, o outro negativasse. Seqüestrados por um OVNI, mortos por bala perdida, quem sabe. Talvez tudo, talvez nada" [ caio fernando abreu ]

Música ao longe

às 00:05
- Olha, eu não sou dessas que acredita em analista, sabe. Muito menos que acha confortável e catártico um divã. Também não sou dessas que não tem amigos e procura alguém como você para contar coisas que ninguém quer ouvir. Sei que estou te pagando pra me ouvir. Mas não acredito em você, ok?
- Em mim ou em psicanálise?
- Em ciência. Essa coisa de objetividade é absurda. Você não acha?
- Eu?
- Ah, esqueci! Vocês analistas nunca respondem nada. Eu li uma vez algo que dizia que análise serve pra gente encontrar nossas próprias respostas, e por isso vocês só induzem, nunca respondem. Que besteira!
- Você veio aqui em busca de uma resposta?
- Você até que é um analista que conversa...
- E você é como toda boa paciente que desvia das perguntas.
- Gostei de você. Muito astuto! Então já que você é daqueles que falam e esses 45 minutos estão sendo pagos (eu jurava que eram 50! deve ser coisa de filme...), me responde uma coisa: você largaria tudo que você tem hoje, família, esse consultório modesto, seus amigos, tudo... por uma coisa que você deseja muito, mas está longe?
- Isso tudo que eu tenho é o que eu desejo. O que você tem não é o que você deseja?
- É... é o que eu desejo. Na verdade, eu desejo outra coisa também.
- Coisa?
- Pessoa.
- Que pessoa?
- Isso já não lhe compete.
- Eu sou seu analista.
- Ainda assim não lhe compete.
- E você deseja essa pessoa mais que essa vida que você tem?
- Não tenho muita coisa na vida... Mas o que tenho, ainda assim, é meu. E, de certa forma, largar o que se tem, o que se conquistou, por mais que seja pouco, é muito assustador. Não é assustador?
- Por que é assustador?
- Aí, você já tá sendo um analista de novo! É ou não é assustador?
- Não sei o que você tem.
- Eu tenho o que todo mundo tem. O que você deve ter. O que ele também tem...
- Ele, a pessoa?
- É, ele. Mas o que eu tenho eu quero ter com ele. Mas não sei se quero o que ele tem pra mim.
- Mas você sabe se quer ele?
- Sim, sim. Sem dúvidas. Quero ele. Quero muito. Quero pra caralho, pra dar bastante ênfase.
- Mas ele está longe... E isso exige que você largue tudo - que é pouco - por ele?
- É. Largar tudo, sabe. Essa faculdade sem futuro, meus amigos bêbados e promíscuos, meu lar conturbado. Tudo. Me jogar no mundo. Isso é loucura?
- É!
- É??
- Sim, é.
- Cara, você é um analista. Como você responde "É!"?
- Mas é uma loucura.
- Você não acha certo?
- Não, não acho certo. Largar uma vida que você levou anos... quantos anos você tem?
- 20.
- ... 20 anos pra construir. Uma vida! É uma vida! É uma história! E histórias começadas do zero aos 20 anos não costumam dar certo. Sejamos realistas... A vida não é um filme. Viajar e deixar tudo pra trás por alguém é... no mínimo... insano.
- Insano... Nossa, você tem toda razão!
- Além do mais, nem tudo dura pra sempre!
- Isso é coisa da ciência, que só acredita em números.
- Os números mostram que muitas uniões não dão certo.
- Não me importa os números. Eu ainda assim acredito nas escolhas. Às cegas. Mas é loucura. É insano. Eu sei. Eu sei.
- A não ser...
- A não ser o que?
- Que você esteja apaixonada por ele.
- Como assim?
- O amor nos permite fazer qualquer loucura.
- Mas... mas... que tipo de analista é você? Que mais confunde que esclarece!
- As melhores escolhas são feitas depois da dúvida.
- É assustador, não é?
- Amar?
- Não. Amar não. Escolher amando.
- Assustador...

Ventos d'oeste

segunda-feira, 15 de junho de 2009 às 21:52
"no teu jardim, me fiz florescer" depois de escrito com letras redondas, bem caprichosas, dessas que a gente demora a fazer pra ter todo cuidado nos contornos das letras mais cheias, ela dobrou o papel em três dobras simétricas. suas mãos de menina, finas, com unhas não pintadas, recém-cortadas fez com que o papel fosse parar cuidadosamente no colo dele. ele sorriu. lembrou-se dos tempos de colégio, onde os cochichos eram feitos por recados de ponta de caderno. suas confissões mais secretas expostas à eternidade das palavras. ele abriu o papel com pouca pressa. demorou-se a sorrir, mas assim que o fez, disse "que lindo, flor!", era assim que ele a chamava. era assim que ela se sentia. todo dia ele lhe dava o abraço mais gostoso, mais forte, mais quente, como se fosse o sol de toda manhã. e dizia, ali no banho, bem no fundo do ouvido o eu-te-amo mais rouco e mais profundo, misturado com o som da água, que era a fonte que lhe regava. e ainda no final da noite, no orvalho frio dos medos e das tristezas, era ele com muita dedicação quem lhe enlaçava, para que nenhuma pétala se perdesse pela escuridão.


... com o choro de cada poda, cada pedaço meu que se vai, um outro mais bonito nasce pra te fazer feliz.

... para o jardinheiro da minha vida. que está longe, mas cada dia mais intenso. todo meu amor. e todo meu pólen.

Dobras

segunda-feira, 1 de junho de 2009 às 21:33
te escrevo porque hoje não faz sol. se fizesse, eu não escreveria, te ligava. te escrevo porque a chuva é forte e eu tenho medo do frio lá fora. o que não faz muito sentido já que eu também tenho muito medo do frio aqui de dentro. esse frio que veio de ti, depois se misturou com o frio que veio de mim e hoje nem tu nem eu sabemos como nos proteger da nossa própria frieza. faz frio lá fora, meu amor! e aqueles barulhos que tu me protegias vão chegar... sei que vão. e os braços teus que afastavam meus pesadelos hoje não estão mais abertos. te escrevo porque sinto falta. e saudade é coisa pra ser escrita, meu amor, não dita. escrevo porque aonde não existes, existe saudade. e bem ali, aonde a saudade fica, vem a vontade. te escrevo porque tive vontade de dizer que sinto vontade tua. e todo desejo meu, tu sabes, é manha. e toda manha é prontamente atendida. mimos teus. correntes minhas. te escrevo porque amanhã é junho e quero contar o tempo pra me perder em ti. promessa escrita vale? pois se não valer, eu reconheço em cartório! prometo te seguir sempre, por qualquer canto. prometo escrever-te sem pedir resposta. mas respondendo, saibas tu, ficarei muito mais feliz! tás vendo? eu não aprendo mesmo, meu amor. que sejam meus caminhos tortos... te escrevo porque o que sinto é claro e bonito. guarde bem.


"Perdoe a minha precariedade e as minhas tentativas inábeis, desajeitadas, de segurar a maçã no escuro. Me queira bem. Estou te querendo muito bem neste minuto." [ caio fernando abreu ]

Existiu, sei que existiu

quinta-feira, 28 de maio de 2009 às 17:35
Eu estava 28 horas sem comer. Eu estava 20 horas no ônibus. E não era nem na fome, nem na dor nas costas que eu estava pensando... Quando aquele barulho de motor de ônibus parou, a ansiedade de não só 20 horas, mas de uma vida inteira começou. Ele estava ali. Estava tudo ali... O cheiro bom da madrugada, o gosto de cerveja na boca úmida, os dedos no pescoço apertando bem forte... É, estava tudo ali.

Em casa, em frente ao prato de comida, ele me olhava. Eu pegava cada pedaço sem pressa e mastigava sentindo o deleite que é uma comida num estômago já muito vazio. E ele olhava... Era aquele olhar de quem já não aguentava esperar. Era aquele olhar dele que eu já conhecia da penumbra do beijo. Eram aqueles olhos pequenos e pretos... Ah, aqueles olhos!! E as mãos dele segurava a minha no canto do prato. Ahhh, quantas vezes apertei aquela mão com força pra pedir tacitamente que não me deixasse ir! Mas eu não estava pensando em ir naquela hora... A bem verdade é que aqueles olhos não me deixavam nem pensar.

Terminei a comida. E naquela pouca luz da madrugada, pé com pé, mão com mão, boca com boca, a gente conversa o inevitável. Eu tinha medo... Não nego que tinha. Medo daquele final de ano próximo cheio de erros e tropeços. Mas ele tava ali, sussurrando aquelas coisas que eu esperei o ano inteiro pra ouvir... Tão baixinho... Pra não acordar... Pra não acabar... Pra acalmar... Pra fazer o medo sumir... E foi nas confissões de erro dele que eu confundi as minhas confissões. E foi nos perdões dele que eu joguei os meus perdões. E foi na sedução das promessas dele que eu fiz as minhas. E foi uma noite inteira de palavras aveludadas... de risos abafados... de carinhos ao pé do ouvido. A última coisa que eu queria naquela hora era dormir.

A última coisa que eu queria na vida era que acabasse.


*Escrito e postado no dia 28 de março de 2008

Post it

domingo, 24 de maio de 2009 às 15:48
... quando a gente ama, queremos que o mundo inteiro pare por esse amor. queremos as promessas mais ávidas, mais mentirosas, mais incompletas. e sabemos quando acaba o amor, quando as promessas deixam de existir. mesmo que nunca se cumpram, são elas, são essas palavras prometidas que sustentam um grande amor.


"Serás o meu amor. Serás, amor, a minha paz" [ Chico Buarque ]

Memórias de um náufrago II

quarta-feira, 13 de maio de 2009 às 22:03
Quando era criança, gostava muito de histórias. E a vontade delas era tão grande, mas tão grande, que quando não tinha quem me contasse, eu mesma inventava. Ficava horas no chão do quarto fazendo vozes: "- E o senhor, o que fazes aqui?", "-Vim vê-la. Vim porque não consigo passar um só minuto longe de ti.". Suspirava e inventava...

De repente, percebi que não era só eu que inventava histórias. Era o mundo todo. E a primeira história do mundo que percebi foi a história do Papai Noel. Meu avô trabalhava na Cootramo (uma empresa de táxi do aeroporto Galeão) no qual todo final de ano eles fechavam um clube com piscina, e muito verde e parques. Eu contava nos dedos todos os dias para a véspera de natal, separava o biquini e ia de mãos dadas com meu avô, brincar, nadar e conhecer outras crianças. Mas o mais legal daquele clube era o Papai Noel, porque ele chegava de helicóptero. Era tão lindo! Ele descia, barbudo e sorridente, naquela roupa calorenta, e vinha com um saco enorme que fazia barulho... "-Faz barulho! Tem brinquedo de verdade!", diziam as crianças. E ele sentava num grande palco e chamava "-Larissa! Fulana!" e iam todas as crianças sentar no colo dele e receber seu presente. Foi o primeiro velhinho que eu passei a admirar.

A surpresa vinha quando eu abria o presente: "-Meu Deus! É o joguinho de pintar da Eliana! Era exatamente o que eu queria!". Sim, o Papai Noel adivinhava meu presente. Era o máximo! Como não acreditar nele? Vinha dos céus e ainda sabia meu presente (que eu só tinha dito pra mamãe!). Passei a desacreditar em todos os Papais Noel do mundo e só acreditar naquele. Não tinha como não ser verdadeiro! Até o dia que eu descobri. Meu avô disse "-Não vamos esse ano!" e me disse que ele era de mentira e que era minha mãe que comprava o presente antes.

Passei a admirar outro velhinho: meu avô. Que não só me fez acreditar nessa história que parecia tão verídica, como tinha muitas histórias. Nordestino, militar da Marinha, viajou pouco, mas sabia muito. Trabalhou na guarda de Getúlio Vargas e sabia de tudo. De tudo! E me contava tudo sobre História. Sobre Getúlio. Sobre política. Sobre a vida. Depois de militar, virou taxista e sabia todas as ruas do Rio de janeiro. Todas. E andava por ela me dizendo "Gal Costa? Trouxe ela aqui um dia. Chico Buarque? Mora ali, naquele bairro ali! Renato Russo? Ah.. Esse fuma muito! Não gostava de levar ele não!". Que grande contador de histórias meu avô! E foi ele que uniu a minha grande sede de histórias pela admiração que tinha por ele.

Pensando bem, acho que hoje só gosto de política e história por causa dele. Pela maneira como ele dizia e pela nostalgia gostosa com o qual ele dizia. Quando descobri, há uns cinco anos atrás, que ele tinha Alzheimer, procurei maneiras de manter sua memória sempre viva. Passei a comprar livros sobre os assuntos preferidos dele: Getúlio Vargas, Vasco e política. Conversávamos horas. E sua memória estava sempre afiada. Grande lutador esse meu avô! Não se deixou vencer pelo diagnóstico.

Toda vez que me via com o livro perguntava, "O que diz esse livro?". Gostava de saber todas as histórias. Assim como eu. Ou eu gostava assim como ele? Lembro que ele me deu "Memórias de um náufrago" de Garcia Marquez e ficou comentando o livro comigo enquanto eu ficava na rede lendo. "-Mas você lê rápido, menina! Aposto que esquece tudo depois!". Um dia dei Marcelo Rubens Paiva pra ele e me disse "-Mas essas leituras suas são muito dificeis. Deixo pra você, menina inteligente!"

Há umas três semanas atrás, quando o Alzheimer já era muito e o corpo já estava cansado, eu disse "Esqueceu as horas, vô? Quer que eu te ensine de novo?" e ele disse "Não. Tem pessoas que acham ruim esquecer as coisas. Mas é bom, tem seu lado bom. A gente olha as coisas com olhar de criança. Uma criança que olha um relógio e não sabe pra que serve. E olha, olha, olha e acha mágico aquele aparelho que todo dia faz o mesmo movimento. A gente esquece que está casado 50 anos com a mesma mulher e acorda todo dia pensando 'Que mulher linda!', às vezes a rotina nos faz esquecer do belo. Gosto de esquecer. Gosto de descobrir.".

É essa a sabedoria que ele deixou: a do lembrar de esquecer.

Saudades em demasia, vô. As ruas do Rio de Janeiro não são mais as mesmas sem as voltas do seu carro azul.



"Mas era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado." [ Gabriel Garcia Marquez ]

Cor bege

domingo, 3 de maio de 2009 às 22:23
- Te deixo!
- ...
- Te deixo! Te deixo! Ouviu bem? Te d-e-i-x-o!
- Como quem deixa alguém à beira da estrada?
- ...à beira do abismo! Assim que te deixo... à beira do abismo!
- Você se esqueceu de que...
- Te deixo, já disse! Te deixo hoje para amanhã não ter que te deixar mais! Te deixo hoje para esquecer que pra sempre foi você quem me deixou...
- Nunca pedi... Você sabe que nunca pedi para você...
- Então te deixo! Simples assim. Te deixo e digo mais: te deixo só.
- Como quem quebra as correntes dos braços alheios?
- ...como quem amarra uma bola de ferro nos pés do outro para que ele não a siga!
- Ou para que ele não fuja...
- Que fuja! Te deixo à sorte, ao relento, ao vazio do não-ter...
- Mas te tenho.
- Mas te deixo. Deixo junto as dúvidas. Todas elas. Deixo as lembranças. As melhores. Deixo as risadas. As mais sarcásticas.
- Para me fazer sofrer?
- Para te fazer ir.
- Seu medo é que eu volte.
- Meu medo é te deixar. E te deixo. E que não escrevas. Porque vou mudar tudo depois que você partir. Endereço, corte de cabelo, cor de batom, o perfume, o lençol da cama, o lugar do sofá. Deixo tudo... inclusive você.
- E se eu voltar?
- Não estarei te esperando.
- E se nunca voltar?
- É por isso que te deixo. Porque você nunca volta. Você nunca esteve aqui. Nunca.


“Resta... essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade de não querer ser príncipe senão do seu reino.” [ Vinicius de Moraes ]

... e fez do som da tua risada um hino

quinta-feira, 23 de abril de 2009 às 12:45
Ela nunca esquecerá da sensação de chegar àquela terra distante. Eram horas de viagem, no escuro da noite, no frio da madrugada, os ponteiros do relógio pareciam se mover tão devagar... Ela tentava abrir um livro, fazer um sudoku, mas a impaciência só a fazia fitar as horas. Houve vezes que passou madrugadas na rodoviária, ficava as 12 horas sem comer, porque o dinheiro não era proporcional à vontade, ao sonho, ao desejo. Mas sabia que, assim que chegasse, teria uma comida quente, um abraço apertado e o cheiro inconfundível dos cabelos recém-arrumados. E que no meio daquela cidade bem grande, que nunca conhecera ou que pouco conhecera, estaria alguém esperando por ela. Não teria rosas nas mãos, um sorvete de charge, nem um anel bonito no bolso, mas teria o sorriso pela qual ela se jogou no mundo para ter. O sorriso que fez chorar pai e mãe. O sorriso que era seu alento. E ao ver a placa da cidade se aproximando, ela penteava os cabelos, passava perfume, disfarçava as olheiras da noite vigilante e esperava. Ah, como valia a pena a vida quando se larga tudo por alguns dias, poucos dias, para se viver o inexplicável. E ela temia a volta com tanto ardor. Mas esquecia-se dela para que o sorriso que a esperava não fosse efêmero. Que fosse todo dela. Que fosse só pra ela. Como era longa essa espera! E como era catártico o encontro! Não importa se as palavras são duras, nem se os dias são poucos, se a volta é um castigo, era ali o clímax da sua tragédia: a chegada.


"Mas sempre me pergunto por que, raios, a gente tem que partir. Voltar, depois, quase impossível." [ Caio Fernando Abreu ]

Encanto meu, mistério teu

sexta-feira, 10 de abril de 2009 às 15:52
me senti invandida pela sede tua, pelo suor teu, pela volúpia tua que era também minha volúpia. e o tempo não era mais medido pelas horas e sim pelas respirações, ora calmas ora ofegantes, o que fazia o tempo se tornar algo absolutamente indefinido. e as cores eram só branco e preto. a ausência de cor com a presença de todas as cores formando uma dubiedade só daquele instante. que eram muitos instantes num só momento. que, por sua vez, eram muitos momentos de uma só vida. era ali a gênese e a morte. numa confusão de extremos perfeitamente compreensíveis. o vento que acariciava as cortinas vinha para nos fazer sentir o calor nosso. o calor de um com o calor do outro. o calor mútuo fazendo o vento se sentir indesejado. e era bonito de se ver aquela vergonha no rubor das faces, embora nenhum de nós pudesse realmente ver. era a penumbra fazendo tudo preto, branco e mistério. eram os olhos teus que eu buscava para sorver alguma explicação daquele momento. tu não querias explicar, não era a explicação o parodoxo de nada para se encaixar naquele momento, o momento das antíteses extremas, dos extremos antitéticos. era o tempo chegando com a luz do dia. era a vida deixando de ser momento, de ser instante, de ser irreal. era o vento das palavras que vinham. e o que virá, só tu sabes. só tu queres.


“Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas.” [ Caio Fernando Abreu ]

É a vida, mais que a morte, a que não tem limites

terça-feira, 7 de abril de 2009 às 19:28
A menina sempre ía ao teatro sozinha. Não tinha amigos na cidade nova. E os que tinha, preferiam um bar, um cinema, ou um motel. Ela não. Ela preferia o teatro. E estar sozinha, ali, naquele banco desconfortável, olhando para o pano vinho que escondia algo de muito bonito, era feérico demais para ela. Se arrepiava. Sempre.

A peça era sobre uma história de amor. Havia tempo que não se passavam peças falando de amor nessa cidade tão grande que ela invandia. Pensava que o romantismo estava fora de moda não só na vida, como também na arte. Sentiu um júbilo imenso. Como era lindo cada gesto apaixonado daqueles personagens! Ele lutando por ela. Ela lutando pela vida. Os dois com medo. Os dois se entregando. Os dois em um só.

As cortinas fecharam. Ela escondeu o choro. Mas viu que era desnecessário, já que não haviam muitas pessoas por perto. É, era verdade, as pessoas não gostam mais de histórias de amor. A menina se perguntava por quê. E chegou a conclusão particular de que o amor estava distante demais para se tornar realidade. Apesar de todos procurarem a arte como fuga da realidade, no fundo procuramos mais pela identificação por algo que não seja só nosso. E o amor já não era mais universal. Era para os poucos. Eram para os que se encontravam.

E a menina resolveu, numa idéia lancinante, que iria viver a história do teatro. Era uma idéia maluca, ela mesmo admitia. Viver uma história já contada, já escrita, já vivida, já interpretada? Ela estava cansada de sua própria história. Essa história sem platéia, sem leitores, sem cores. Aquela história, sim, era dela. Não mais dos outros. E viveria. "Vou viver.", pensou categórica.

A menina nunca mais foi ao teatro. O teatro era sua própria vida. Nunca conseguiu viver a peça que queria. Mas amou. Amou tantos e muitos. Com ardor e zelo. Ah, essa menina e sua busca pela história de amor! Esquecendo da sua história de vida, doou-se tanto que viveu para os outros, para as peças alheias. Procurou tanto a arte no que vivia. Não achou o amor a menina. Não achou o seu final feliz. Mas sua vida era aplaudida de pé. Por ser a história que todo mundo vive. A história da busca.


"Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. Carecia optar. Cada um optou, conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia." [ Carlos Drummond de Andrade ]

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