Moldura

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009 às 18:02
Um dia eu acordei e vi um óculos vermelho igual ao meu. Um sorriso igual ao meu. Palavras calmas iguais as minhas. Sonhos iguais aos meus com cores um pouco diferentes. Mais do que um espelho, eu vi uma metade minha perdida que faltava. Platão dizia que éramos seres andrógenos e que Zeus tinham nos partido ao meio para tornar-nos incompletos, infelizes. Era nessa busca mitológica que encontrei a doçura suprema com cabelos cacheados e olhos grandes que de tão grandes dizem tudo, quase tudo, quase nada. Era uma parte minha que faltava, que eu busquei embaixo de tapetes, atrás dos móveis, em cidades distantes... Não, tava ali do lado. E era tão parecida comigo! Minha metade tão bela. E por sermos metade, tínhamos, segundo as leis da física, nossos pólos diferentes para nos atrairmos. Positivo e negativo. Preto e branco. Áries e Câncer. E depois desse dia, eu acordei e vi de novo ela com aquele sorriso gostoso e um abraço. E depois, eu acordei e quis levar um livro pra ela. Lavoura Arcaica, o que acha? E no outro dia, ela adorou e me deu um desenho. E nos outros dias, eu falei do meu amor distante, ela falou do seu amor confuso. E o que era ausente, se tornou forte. E eu confundia minha risada com a risada dela. Minhas idéias com as idéias dela. Minhas piadas - ah, nossas piadas! - com as piadas dela. Uma identificação sem começo nem fim. Uma história contada pelo meio.

Um dia eu acordei e não vi mais. Outro dia acordei e estava longe. Depois acordei de novo, e estávamos diferentes. Mas tínhamos laços tão fortes e tão invisíveis, que os lugares mudavam, os planos mudavam, os amigos mudavam, as palavras à giz no quadro verde mudavam... Mas éramos ainda duas metades. E a expectativa pelo novo era grande que a amizade aumentava com as descobertas. O segredo dela era meu segredo. O meu segredo era também dela. E cada passo inesperado, cada surpresa, cada espanto, tristeza e risada escondida era compartilhado. Havia muita água entre a gente, mas havia ainda muita preocupação. O pranto dela era minha noite insone. Meu júbilo era o regozijo dela. E assim vice-versa. Era bonito de se ver, de se ter, de se sentir.

Um dia eu acordei com saudade dela. Do cheiro gostoso do cabelo dela nas minhas manhãs de aprendiz. Da fofoca engraçada da pessoa da frente. Da piada secreta sobre o trivial. E da risada longa e sem fim sobre tudo que era permitido. E o que não era permitido a gente ria escondido. Mas ria. Acordei com uma saudade dos vestidos que eram quase meus. Das saias que eu fazia minhas. Das indicações sempre certeiras - "ouve essa música que você vai gostar!"- porque como metades o que agradava um ouvido, agradava ao outro, o que agradava a um olho... ao outro agradava. Era assim. Tão simples.

Um dia acordei com tanta saudade que resolvi escrever sobre ela. Em 72 cores. Platão estava certo.

"Quando acontece encontrar alguém a sua metade verdadeira, de um ou de outro sexo, ficam ambos tomados de um sentimento maravilhoso de confiança, intimidade e amor, sem que se decidam a separar-se, por assim dizer, um só momento. Essas pessoas, que passam juntas a vida, são, precisamente, as que não sabem dizer o que uma espera da outra. [...] E a razão disso é que primitivamente era homogêneo. A saudade desse todo e o empenho de restabelecê-lo é o que denominamos amor."

[ O banquete / Platão ]

O amor nos tempos do cólera

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009 às 18:54
"Mesmo quando já velhos e apaziguados evitavam evocar aquela briga, porque sabiam que as feridas mal cicatrizadas voltavam a sangrar como se fossem de ontem. Mas a lição foi útil, não só para ele. No curso dos anos, ambos chegaram por caminhos diferentes à conclusão sábia de que não era possível morarem juntos de outro modo, nem se amarem de outro modo: nada neste mundo era mais difícil do que o amor"

[ Gabriel Garcia Márquez ]

Uno

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009 às 17:42
As pessoas sempre se vão. Assim como você marcando a, descarta b, c e d. As pessoas se vão como escolhas descartadas. Não foram a opção que você marcou um x e achou a certa. Às vezes, no gabarito da vida, você vê que a resposta que você jurou que sabia, que tinha certeza ser a correta, era a errada. E não te conforta saber que várias pessoas marcaram como você. Que todos juravam achar aquela mesma resposta a ideal para aquela pergunta. Você não acertou. Por mais que todos tenham se enganado, o erro será sempre seu. Foi sua a escolha, foi sua opção, foi você quem descartou as inúmeras outras possibilidades que... agora já foram, não adianta olhar pra trás. Deixo de marcar qualquer opção, por agora. Cansei de deixar as pessoas partirem. Cansei de marcar pessoas que não são corretas. O pano da família, a mão do lado da cama em dia de tempestade, o amigo de palavras cantadas no ouvido, para que servem se são passageiras? Não quero veneno alheio, já tenho meu próprio. E é amargo como essa solidão de pessoas que chegam e vão embora. Como se minha casa fosse a estação de um trem que nunca para. Minha linha da vida, na palma da mão, aponta caminhos que eu não quero seguir. Minha opção agora não é certa, nem errada. Eu anulo meu direito de escolha. Não tô aqui pra esperar a resposta certa.


“Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há mais espúrio que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente.” [ Raduan Nassar ]

Cores perplexas

sábado, 14 de fevereiro de 2009 às 20:18
Estava serena, no entanto. E se assustou com a descoberta. Foram tantas vezes que chorou, quebrou pratos, chutou cadeiras, gritos pela janela, foram tantos destemperos que, incrédula, percebeu uma calma insuspeita. Tinha descoberto os desenhos, as cores, o rabisco dos sorrisos alheios provocando o seu próprio. Cada cor trazia uma lembrança fresca da infância que passou se perguntando. De todas as crianças, era a mais curiosa. Tudo estava sempre incompleto porque não havia explicações. Ou tudo era muito bem explicado para parecer real. E agora, já feita de desenganos e caminhos tortos, descobria todas as respostas que sempre procurou, mas perdia tempo demais perguntando. Era assim: a resposta vinha naturalmente. O cenário em volta era o mesmo de muitos anos, mas a menina ali era outra. Naquela cama, tinha dormido alguém além dela mesma. Alguém que não a esperou reinventar-se. E ela se reinventava. Com cores diferentes. E contornos cada vez mais firmes. Era o tempo ou era a falta? O buraco do mundo também era seu. E ela olhou na estante, a bruxinha do amor verdadeiro, que tava com sua vassoura em riste faziam três anos. Disseram, um dia, que era para tirar a vassoura e só devolver quando encontrasse o amor genuíno. Pensou em tirar, mas desistiu. O amor se foi, mas isso não significa que nunca existiu, não é? Sem perguntas. Ela estava farta das perguntas que lhe tomavam o tempo das descobertas. A paz era sua prenda agora. Sua prenda eterna.


“...paixão tão endemoninhada que não suportaria a água benta de seu próprio batismo” [ c. f. abreu ]

Última lua

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009 às 22:07
A maior das brigas. A mais furiosa, suada, gritada, senil. Estavam os dois roucos, cansados, raivosos. Completamente vencidos. Ela ainda tinha muitas palavras cuspidas para jogar-lhe na cara. Ele ainda tinha ironias à tiro de bala para ofertá-la. Mas estavam vencidos. E não adiantava mais. Nada mais adiantava ou importava. Eram os últimos minutos. Sabiam. Ficaram nervosos com a repentina calma aparente. Que silêncio era aquele depois da catarse vomitada? Ela tentou procurar sua bolsa. Ia embora. Sim, ia embora. Pra sempre. E sairia dali direto para um bar abusar da tequila para maldizê-lo a um estranho qualquer. Ele procurava uma parede, uma mesa, alguma coisa bem dura para socar. Havia uma força contida nele louca e desesperada para ser posta pra fora. Fechava aos mãos. Com força. E procurava um alvo. Um alívio.

- Então é isso? - disse ela, enquanto andava pela casa em busca da bolsa.
- É, é isso. - disse ele, enconstando numa mesa, desistindo de qualquer tentativa.
- Onde tá minha bolsa? Quer saber? Já estava na hora mesmo! Você é de Libra eu sou de Escorpião. A gente nunca ia dar certo mesmo.
- Demos certo por três anos.
- Nunca demos certo. Somos dois errantes orgulhosos demais para se dar por vencidos.
- Estamos vencidos. Os dois perderam.
- Os dois venceram. Estamos os dois livres.
- Essa liberdade que você tanto foge?
- Não pense que sabe alguma coisa de mim! Você não sabe do que fujo! Você não sabe nada!

O tom de voz dela agressivo fez com que ele dessa vez socasse firme a mesa. Não aguentou. Não estava aguentando. O barulho da madeira a fez ficar mais impaciente pelo sumiço da maldita bolsa. Queria chorar. O vazio daquela relação que era tão completa, já estava invandindo ela de uma maneira inovadora. Ele olhou pros pés e pensou que sentiria falta das poesias que ela escrevia todo dia e colocava debaixo do travesseiro dele. Ela olhou pro teto, segurando lágrimas e pensou que já estava morrendo de saudade da massagem que ele fazia no seu pé antes de deitar.

- Vou embora! Depois você me manda essa bolsa. Por alguém.
- Me desculpe pelas palavras duras. Você não é prepotente.
- Me perdoe também. Você não é de maneira nenhuma obsessivo.
- Acha mesmo que eu não sou confiável?
- De modo algum! Você é uma das pessoas mais amigas que eu conheço. E sincera! E eu, sou mesmo assim tão desdenhosa?
- Quê isso! Nunca vi ninguém mais preocupada que você!
- Bom, então seja feliz. E não esqueça de pôr agora o relógio pra despertar. Pra não perder a hora.
- Seja feliz. E você não esquece de tomar o remédio do coração! Eu não vou mais te lembrar.

Ela deu um passo. Estava indo embora. Ela esperava que ele a impedisse. Ele esperava um arrependimento.

- Ei. - disse ele, fazendo ela se voltar, pronto a acabar com o seu orgulho.
- Oi? - disse ela, com uma esperança forte surgindo de repente.
- Você não veio de bolsa hoje.
- Ah...
- Adeus.
- Adeus.

E ela se foi. E o barulho da porta foi tão alto que fez o silêncio se tornar absurdamente pesado. Para os dois.

"É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo." [ clarice lispector ]

De olhos fechados

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009 às 22:50
Era uma noite agitada. O bar tinha umas luzes azuis, bem claras, que dava sutileza a qualquer dança. Pessoas bonitas, jovens, falantes, risonhas. Muitas pessoas. A música, eu não sei que música é essa, mas é gostosa. Os drinks são coloridos. "Por favor, eu quero um sex on the beach." O bartender sorriu. "Sozinha?". Só sorri. Nesses lugares, me disseram, falar sempre atrapalha, só sorria. Eu pensei em dançar, mas a minha condição de expectadora ali na beira do bar, era muito mais confortável. Me sentia bem mais confortável como socióloga e idiossincrática que sou, só olhando as pessoas, seus flertes, seus sorrisos falsos e suas danças ostensivas. Estavam todos querendo ser o que não são e querendo ter o que nunca tinham. Mas... aquele ali, no canto, de cabelos cacheados e barba... Aquela blusa azul e branca.. Eu conheço aquela blusa, e talvez aquelas costas. Conheço esse pescoço e... Nossa, é claro que eu conheço esse sorriso! Como eu não reconheceria? Quantos anos se passaram? "Mais uma?". Aceitei a oferta do bartender. Dessa vez vodka com morango. Bem forte. E era ele. Lindo como sempre! Com ela... Nossa, como era bonita! Cabelos longos e uma risada que parecia não ter fim. Como será que se conheceram? Eu virei pro bartender. Não, não vou ficar olhando. A vida continua, certo? A dele continou. Ele seguiu em frente. Eu estou aqui. Tivemos bom momentos, uma linda história e agora eu estou aqui com uma bebida colorida e ele com uma mulher que veste bota. Sempre achei super chique mulher de bota! Será que ele me viu? Me reconhece? Ainda me ama? Virei de novo e ela não estava mais lá. Ele estava com as mãos no bolso, jeito típico, um olhar meio vago. "Tequila! Agora eu quero uma tequila! Duas!". O bartender riu, sabendo a linguagem apropriada desses lugares. "Vá com calma, minha linda." Linda? Odeio pessoas que te abordam com adjetivos. E esse bartender tá com um sorriso muito largo pra mim. Viro de novo e ele me vê. Damos um sorrisinho sem graça, desses que chamam de amarelo. Então dou as costas, como uma criança assustada. "Ei", digo pro bartender, "Qual é o seu nome?". Tá, eu só queria dizer pra ele ok-você-está-com-sua-namorada-e-eu-to-muito-bem-como-o-meu-paquera-que-serve-drinks. Acho que o bartender se empolgou. Até me chamou pra dançar depois das duas. "Eu não danço." E ele riu. Como riem esse pessoas daqui! Que graça tem isso tudo? Depois do sorriso aliciador, mais uma dose, de que era? Não sei, era algo vermelho e bonito, cheio de gelo. Chegou mais perto "Essa é pra você.". Nossa, mas chegou perto demais, senti até o hálito de menta. Eu ri. Ah, vai, todo mundo ri, quero fazer parte desse código. Foi quando eu virei de novo, talvez ela já tenha voltado. E no momento que eu me virei, ele estava logo atrás. Com aqueles olhos bem pretos e pequenos, a barba tão desenhada, tão gostosa de enterrar as mãos. Deus, como ele é lindo! Essa beleza me doía. Foi quando ele disse "Ele não é suficiente pra você." E saiu. Saiu! Virou as costas e saiu! E bateu a porta. "Ele não é suficiente pra você." O bartender? Quem? Qualquer pessoa? Ele? Acho que eu vou vomitar... Acho que bebi demais. Acho que vou atrás dele e gritar "Ei, quem você pensa que é pra voltar depois de todos esses anos e me dizer isso?". Acho que não sei o que fazer. "Ele não é suficiente pra você". Essa frase não sai da minha cabeça. Nunca mais!

"Às vezes te odeio, por quase um segundo, depois te amo mais..."

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