sobre fingir

domingo, 25 de outubro de 2009 às 21:47
a menina não entendia o desprezo. e fechou os olhos, bem fortes, pra tentar buscar no fundo da sua memória já desgastada - não pelo tempo, mas pelo esforço - o que teria feito para ele. onde pecou, a palavra derradeira do desdém, o gesto incerto, ou teria sido um erro de português num momento crucial? nunca soube conjugar certos verbos... a menina nada achou. em contrapartida, resolveu então achar algum motivo suficientemente coerente para desprezá-lo. odiá-lo, talvez. estaria ele a odiando nesse momento? desejou que sim. "que seja!", também o odiaria. e seu desdém iria ser ainda mais amargo. duvidou de si mesma, já que tudo que fazia era imperceptivelmente doce, mesmo que falso certas vezes. lembrou-se então de toda a curta história que tinham. da maneira como ele ria do seu sotaque arrastado. de como ele implicava com seus vestidos sempre tão curtos. ah, como ele ria engraçado quanto estava bêbado! era bom o cheiro dele de cigarro, perfume e alguma coisa que ela não conseguia identicar. devia ser amor. ele cheirava amor, embora ela nunca percebesse amor em nada mais nele. o lugar mais improvável de se sentir amor: pelo cheiro da pele. e ela sentia. e lembrou-se do roçar da barba dizendo "a gente se fala!". eles não se falavam mais. não sabia o motivo. por mais que no fundo, ela sabia, houvesse algum. a menina desistiu de odiá-lo. desistiu das desculpas, dos motivos, dos dissabores. tem lembranças boas dele. e são boas mesmo com o silêncio. serão boas mesmo com a distância. permanecerão boas com o tempo? não sabia. a menina não sabia mais porque nada disso estava acontecendo. mas sabia que foi bom ter acontecido. erro seu, erro dele. não importava. sua memória fraca sabe bem o que guardar.


"... porque mistério sempre há de pintar por aí." [ Doces Bárbaros ]

Um tesouro

terça-feira, 20 de outubro de 2009 às 22:40
Diálogo no Jardim do Palácio
[ Fernando Pessoa ]

A - O nosso pai e a nossa mãe foram os mesmos . Nós somos portanto a mesma cousa; somos um só, ainda que pareçamos dois? Ou não somos - e o que interveio entre nossos pais e nós para que pudéssemos ser diversos? O que é que me separa de ti? Estendo a mão e toco-te e não sei o que é tocar-te... Olho-te e não percebo o que é ver-te. Para mim és mais real do que eu própria porque te vejo todo, porque te posso ver as costas e não a mim... Para mim existo apenas de um lado... Oh, se eu pudesse compreender o que estou dizendo!

B - Que vês tu de mim? O meu corpo. Tu à minha alma não vês.

A - Mas nem a minha vejo, e ao meu corpo mal o vejo. Não o vejo como um corpo se deve ver para parecer real. Olho para baixo para ele, não olho para diante como para ver o teu. Se ao menos eu me sentisse sentindo meu corpo! Mas não me sinto dentro nem fora. Nem sou nem existo, o meu corpo. São - corpo e alma - qualquer cousa que eu não possuo. Ah! e quando nos espelhos que me reflectem me vejo de costas, andando, ou me vejo de lado - encho-me do terror do meu mistério. Sinto-me horrorosamente coexistir comigo [própria]. Ando atada a um meu sonho que sou eu. Quando me vejo de costas nos espelhos parece que tenho um outro ser, que sou outra cousa. Estranho-me por fora... Que horror que não possamos ver mais do que um lado do nosso corpo de cada vez. Que se passará do lado que não estamos vendo quando nós o não estamos vendo? Reparaste já que não podemos ver mais do que dois lados do palácio ao mesmo tempo? Que Deus se estará pousando sempre do lado para que não podemos olhar? Se tu soubesses como a minha vida é pensar nisto!

B - Ah, tudo isso não me perturba tanto como a minha voz, quando soa de mim e eu penso que não a criei, nem sei o que ela é, e a trago comigo como uma coisa minha. Falo e reparo nas palavras e no mistério de elas significarem. Nunca te escutaste? Tu nunca te escutaste? Mais do que ver-me de fora, o que os teus espelhos, ainda assim, te conseguem, eu queria ouvir-me de fora! Tapo os ouvidos às vezes, para ouvir a minha voz dentro de mim, e ouço apenas um sussurro, como se estivesse mais perto de mim, e começasse já a conhecer de quem é a voz que é minha. E tenho um medo que não me deixa continuar...

A - Ah, e os outros sentidos! A quem te sabes tu na tua boca? Que cheiras tu quando não cheiras nada? E quando tocas com uma mão no teu braço ou na tua face - pensaste já que a tua mão é que toca na tua face e não a tua face na tua mão, mantém a tua face sob a tua mão e será sempre a tua mão que toca, e a tua face a que é tocada.

B - Mesmo o toucar nas cousas - que estranho! Se eu tiver aquela pedra na mão, daí a pouco não a sinto já - parece que pertence ao corpo. Que mistério que é tudo! Andamos a dormir para nós próprios. Quanta alma durará o nosso sono?

(uma pausa)

A - Às vezes, quando penso muito adentro, sabe-me a que corpo e alma são uma cousa só... Parece-me então que realmente vemos as cousas de dois lados, que a alma das cousas é aquilo que nos parece que não vemos delas... Não, não é isto que eu te quero dizer... Vê, não sei pensar o meu pensamento!

B - Sim, compreendo o que não disseste. Mas o corpo não existe, talvez: é a alma vista pela [ ] de si própria.

A - Não. Não é assim. Não é assim. Mas eu não sei como é.

B - Vamos jogar, se quiseres, um jogo novo. Joguemos a que somos um só. Talvez Deus nos ache graça e nos perdoe ter-nos criado... Senta-te aqui, defronte de mim e chegada a mim. Encosta os teus joelhos aos meus joelhos e toma as minhas mãos nas tuas... Assim... Agora fecha os olhos. Fecha-os bem e pensa... e pensa... Em que deverás pensar? Não, não penses em nada. Trata de não pensar em nada, de não querer sentir, de não saber que ouves ou que podes ver, ou que podes sentir as mãos, se quiseres pensar que elas existem... Assim, amor... Não movas nem o corpo nem a alma...

(uma pausa)

B - O que sentiste?

A - Primeiro nada... Foi um espanto de ti e de mim... Depois que me esqueci de tudo, meu corpo cessou. Quis abrir os olhos mas tive um grande medo de os abrir. Depois cessei ainda mais... Fui pouco a pouco nem tendo alma. Encontrei-me sendo um grande abismo em forma de poço, sentindo vagamente que o universo com os seus corpos e as suas almas estavam muito longe. Esse poço não tinha paredes mas eu sentia-o poço, sentia-o estreito, circular e profundo. Comecei então a sentir o grande horror - ah, eu já não poder senti-lo! - é que esse poço era um poço para dentro de si próprio, para dentro não do meu ser nem do meu ser poço, mas para dentro de si próprio, nem sei como.

B - Depois? Depois?

A - Depois desci... Encontrei no pensamento uma dimensão desconhecida por onde fiz o meu caminho... É como se abrisse no escuro o vácuo, O súbito pavor de uma Porta... Assim no meu pensamento uno, vácuo abstracto, uma porta se abriu, um Poço por onde fui descendo. Compreendes bem, não compreendes? Foi no pensamento todo abstracto e sem diferenças nem fins, nem ideias, nem ser, que um Poço se abriu... E eu desci, ao contrário do que se desce - ao contrário por dentro do ao contrário...

B - Continua, continua...

A - Desci mais, sempre mais... e sempre nessa nova direcção. Mas... (ajuda-me a poder dizer isto!). Oh, que horror! que horror o que estou sentindo! Arrancam-me a alma como os olhos para não ver! Sabes o que eu sinto? Sinto-me como se o visse - como se o visse e aquilo nem pensar se pode! Ah, agarra-me, tem-me nos teus braços! Aperta-me! Aperta-me tanto que o teu braço me magoe.

B - Não quero, não quero... Tu não sabes o que senti!

A - Não ouso querer não o ouvir... Mas tenho medo...

2º - O nosso amor é parecido com o sonho porque não é senão a superfície do amor: O meu amor é impossível como realidade, possível só com amor. Cada um de nós, no nosso amor, não ama senão a si, no amor; sonha em voz alta e é ouvida. Sonha com o corpo, com os beijos, com os braços.

1º - Dir-lhe-ei que o não amo. Que melhor amante que tu? És mulher como eu e amando-te é a mim que me posso amar.

2º - Realizar o amor é desiludir-se. Quanto não é desiludir-se é acostumar-se. Acostumar-se é morrer. Por mim só amei na minha vida, e amo, a um estrangeiro de quem não vi mais do que o perfil, a um cair de tarde, quando estávamos numa multidão.

1º - Mas ele sabe que o amas? Se ele não sabe que tu o amas de que serve amá-lo?

O meu amor é o meu e está em mim e não nele. Que tem ele comigo senão que o amo? Se eu o conhecesse a nossa primeira palavra seria a nossa primeira desilusão... Valerá a pena amar o que podemos ter? Amar é querer e não ter. Amar é não ter. O que temos, temos, não amamos.

A - Se, apesar de tudo, nós nos amássemos!

B - Não, agora já não pode ser. Descobrimos num momento o que os felizes atravessaram a vida sem descobrir, e os mais infelizes levam muito tempo a achar. Descobrimos que somos dois e que por isso não nos podemos amar, Descobrimos que não se pode amar mas só supor que se ama.

A - Ah mas eu amo-te tanto, tanto! Tu se dizes isso é porque não imaginas quanto eu te amo.

B - Não, é porque eu sei quanto tu me não podes amar... Escuta-me. O nosso erro foi pensar no amor. Devíamos ter pensado apenas um no outro. Assim, descobrimo-nos, despimo-nos da ilusão para vermos bem como éramos e vimos que éramos apenas como a ilusão nos fizera. No fundo não somos nada senão Dois. No fundo somos uma epopeia eterna - o Homem e a Mulher...

A - Oh, meu amor, não pensemos mais, não pensemos mais. Amemos sem pensar. Maldito seja o pensamento! Se não pensássemos seríamos sempre felizes... Que tem quem ama com o saber que ama, com pensar amor, com o que é o amor?

B - Não podemos deixar de querer compreender. Quanto mais penso em tudo, mais tudo se me resolve em oposições, em divisões, em conflitos! Mataste de todo a minha felicidade! Agora mesmo que eu quisesse sonhar, nem isso podia fazer. O mundo é absurdo como um quarto sem porta nenhuma... Que alegria se não pensássemos, e que horror o havermos pensado!

A - Agora podemos sonhar... Vem. E não penses mais, não olhes mais para o amor.

B - Não... Agora é impossível. Podemos não pensar, mas não esquecer que pensámos... Sejamos fortes e separemo-nos agora para sempre. Oxalá nos possamos esquecer e esquecer que sonhámos o amor e vimos que ele era uma estátua vã... Olha, tolda-se o céu... Levanta-se o vento. Vai chover...

A - Já não ouso dizer-te que te amo, mas amar-te-ei sempre. Tu não me devias ter amado... Tu...

B - Nada devia ser comigo é... Fomos infelizes, mais nada. A curva desta estrada foi tal que dela vimos o amor e não pudemos amar mais.

A - Tu não me amaste nunca. Se tu me tivesses amado, tu não podias dizer isso. Se tu me tivesses amado tu não pensavas no amor, pensavas em mim. Sim, agora está tudo acabado, mas porque entre nós nunca houve senão o meu amor. Amaste-me talvez porque pensaste que eu te amava ou que te devia amar. Não sei porque me amaste, mas não foi por me teres amor... Porque me olhas assim tão diferente e alheado?

B - Porque reparo agora em quão pouco sabemos do que somos, do que pensamos, do que nos levas. Subiu-me agora à compreensão o que tudo isto é de complexo e absurdo. Não nos podemos compreender. Entre alma e alma há um abismo enorme. O que nós descobrimos afinal foi isso: eu vejo-o e tu não o queres ver. Mas eu descobri mais, ao reparar que não sei o que devo fazer - é que entre nós e mim próprio se abre um abismo também. Andamos como sonâmbulos numa terra de abismo.

A - Adeus, sê feliz e esquece-me. Não te demores que chove mais. Na curva da estrada há uma árvore grande onde te abrigares. Vai depressa, vai depressa. Chove mais.

Quando você chegar

segunda-feira, 19 de outubro de 2009 às 00:51
Ainda e sempre

Acho graça do teu medo
Nossos riscos na janela
Nosso sonho não é segredo
Nada apaga a nossa vela
Não depende do sucesso
O sucesso é ele assim
Livre, sendo assim não peço
Pego sol pr’ocê e pra mim
Nossa casa ainda é o mundo
E o teu filho vai com a gente
Cada vez é mais profundo
Eu não quero ser serpente
Nós seremos gaivotas
Pra riscar de leve o céu
Que nos chamem de idiotas
Pretensão, queimei teu véu
Nosso som é pra quem quer
Nosso verso é pelo amor
Vai andando onde quiser
Vai por mim onde eu não for
Sou o trem, você é o trilho
Tua risada afasta o mal
Nosso amor ainda tem brilho
Eu vou ver o teu sinal
Mais de trinta anos vão
Onde o tempo quis levar
Como o tal do pescador
Mais com a rede que com o mar
Canto, canto e é só cantar
Por você não desafino
Fiz da tua flauta o lar
Fiz da tua risada um hino

[ Oswaldo Montenegro ]


Pra você, meu pulcro poeta.

sobre esperar

domingo, 18 de outubro de 2009 às 12:40
é, boy, a vida é negra. você aceita um pouco de vodka? eu também não bebo vodka, mas hoje eu quero que o amargo da garganta esconda o amargo da vida. essa coisa de decepção e tudo o mais. dizem por aí que o desamor é mais saboroso, por ser cruel. eu não sei. tu sabe? eu, até hoje, só provei do amor. aquele desmedido, insano e feérico amor. não sei porque ainda o elevo, foi ele quem me trouxe aqui. nesse bar sujo no meio da madrugada. me fazendo tomar uma bebida que eu nem gosto. me fazendo dizer coisas pra quem eu nem conheço. eu te conheço? então, prazer. tem certeza que não aceita um pouco de vodka? se você está aqui, a essa hora, é porque existe alguma coisa amarga lá fora. tome! beba um pouco. no exato momento que ela chegar na sua garganta você vai esquecer todo o poço fundo que é o mundo. é negra a vida, pode ter certeza, amigo. quê? se eu tenho medo da madrugada? tenho medo da espera. é ela sempre o meu maior medo. a espera de um telefonema que poderia mudar sua vida, nossas vidas e que não veio. não quero ser esquecida! quero depois das chuvas de palavras duras, um pouco de carinho, quem sabe um cafuné na cabeça. não quero esperar mais. senta mais perto! conte seus problemas. o meu já se resume estar aqui. esperando qualquer porta se abrir nesse abismo escuro, por vezes um pouco iluminado, chamado amor. não dizem por aí que o desamor é mais gostoso? eu já disse isso? acho que já foi vodka demais pela garganta... acho que já esperei demais essa porta que nunca se abre... vou pular as janelas, querido. tem perigo? será que tem?



“Então eu te disse que me doíam essas esperas, esses chamados que não vinham e quando vinham sempre e nunca traziam nem a palavra nem a pessoa exata. E que eu me recriminava por estar sempre esperando que nada fosse como eu esperava, ainda que soubesse.”

sobre caminhos

quinta-feira, 15 de outubro de 2009 às 16:34
seria trágico se não fosse tão belo. me queira bem! te pedi com força. me queira muito bem, te quero tão bem nesse instante! mas você se foi. não te queria meu, te queria claro. te queria me querendo bem. me desejando caminhos longos e floridos. me mandando beijos muitos, aos montes e ao acaso. me enviando cartas com boas novas e uma pitada de saudade. me queira bem, por favor... todo mal que lhe causei, a dor é toda minha. e mesmo a dor que lateja nos dias de chuva forte, mesmo a saudade que queima nos dias que são noite, mesmo assim te quero bem em demasia. não te quero como te quis, não te quero só meu, não te quero perdido. te quero rindo. te quero escrevendo poesias em caneta nanquim. te quero tão bem que até me esqueço do que você não quer. e às vezes dá vontade de te ligar de madrugada e dizer que meus sonhos são todos teus. é por te querer bem que te imagino nos meus devaneios noturnos. é por te querer bem que te procuro nas ruas, esquinas, becos, é só pelo bem querer que nunca te encontro. e por não te encontrar, acabo ficando aflita e faço preces pra deuses que não acredito. pedindo só e somente só que você fique bem. que você não se perca de mim. ei, me queira bem? pois eu te quero tanto, tanto e tanto que já nem sei dizer. te quero bem. mesmo distante, mesmo triste. ah, te quero bem... pode acreditar.


"Tu pouco dás quando dás de tuas posses. É quando dás de ti próprio que realmente estás dando. É belo dar quando solicitado; é mais belo ainda dar quando não solicitado; dar por haver apenas compreendido." [ Kahlil Gibran ]

sobre ir embora

segunda-feira, 12 de outubro de 2009 às 15:23
pegue aqueles nossos segredos e leve embora. leve o livro do desassossego do pessoa que eu pedi que você me desse, mas nunca deu. está aqui em casa faz muito tempo. mas não é meu. pode levar! leve também toda a sujeira dos meus pés descalços! você com essa mania de chinelos, eu com minha mania de andar no chão gelado. agora você não vai reclamar mais quando eu sujar o lençol com a poeira do dia. leve a caneca de café. não precisarei mais fazer café de madrugada para te dar o colo dos dias difíceis. a caneca já puida de tantas vezes ter sido atirada na mesa, lembra as vezes que você com raiva a derrubava me acusando de estar mentindo? leve também minhas mentiras pra você tão claras! pra mim ainda quase pinturas. quase espelho. quase caminho. leve também o guarda-chuva. nunca fui de usar. leve consigo que eu vou ficar bem sem você reclamando as vezes que cheguei em casa ensopada. você nunca entendeu que eu gosto de me molhar. leve as chaves, pode levar, não precisa devolver. se você sentir saudade do cheirinho de incenso de cânfora, pode chegar. pode entrar sem chamar. se estiver deitada, pode pegar amendoim no potinho da cozinha. não esqueça de trancar as portas. nunca fui de trancar, né? eu usava você como proteção. mas agora feche bem. dê duas voltas, três se puder. e leve tudo que não puder deixar. e deixe tudo que esqueceu levar. mas volte. nem que seja de surpresa.


"Nada pesa tanto como o afeto alheio." [ Fernando Pessoa ]

sobre se perder

quarta-feira, 7 de outubro de 2009 às 15:40
você me invade inteira. me invade abrindo portas e janelas provocando aquele barulho de madeira contra parede. me invade como um vento forte que vem com cheiro de chuva. me invade com força e o vento que vem tem cheiro bom. tem cheiro de coisa nova, de coisa bonita, de coisa inesperada. e eu esperava você há tanto tempo que nem sabia que essa ânsia que vivia em mim era sua espera. e era. era uma espera que não cabia mais dentro de quem tem essa vontade de que tudo aconteça logo. e aconteceu em mim essa coisa toda sem nome e sem destino. e você me virou do avesso como quem tira uma roupa do corpo. me mostrou cores minhas que eu nunca tinha visto. me mostrou órgãos meus que eu não sabia que trabalhavam por mim. e trabalhavam. e faziam de mim alguém cada vez mais distante daquela que fui há alguns segundos que se passaram. e passaram. e estão passando... e corro atrás deles desesperada como quem perde algo irrecuperável. e não consigo nunca recuperar suas palavras desvairadas. você me traz uma volúpia proibida. e me proíbe sempre de te escolher entre eles, como quem escolhe no varal uma roupa pra sair. e quando se puxa entre os pregadores, a roupa amassada, porém limpinha e cheirosa... ah, tem cheiro bom de coisa nossa! te escolho entre aquele rosa desbotado e aquele verde listrado. te escolho entre o as de copas e o rei de espadas. te escolho antes mesmo de saber os outros sabores do cardápio. te escolho sempre, embora você me negue. e você me busca de uma maneira sua e ri quando auto-intitula sua procura por 'desvarios'. que seja nosso esse seu delírio. que seja meu esse nosso destempero. e é.


"São precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência". [ Milan Kundera ]

quem não tem pra quem se dar, o dia é igual a noite

segunda-feira, 5 de outubro de 2009 às 19:27
ele chegou. reconhecia aquela camisa. preta com a coroa dourada. lembra-se muito bem dela. foi a camisa que usou na primeira vez que se viram. o encontro mais esperado, desejado, planejado e, portanto, o mais frustrante. o cabelo estava curto, esperava mais longo por sinal de rebeldia. ele sentou-se. não disse nada. não cumprimentou. não a beijou na bochecha. só sentou. e ficou olhando.

- não sabia que você fumava.
- você não sabe de muitas coisas...
- passou a fumar quando?
- quando você me deixou.
- humm, influência de quem? da faculdade? dos amigos boêmios, dos filmes europeus?
- vamos começar a nos atacar? são quatro anos sem nos ver...
- quatro anos de silêncio merece um certo ataque.
- não estou em posição de defesa. quer beber alguma coisa?
- quero saber porque você me chamou.
- sabia que viria ao rio. vi no seu twitter.
- ainda procurando por mim?
- jamais deixei de procurar por você.
- foram quatro anos de silêncio.
- foram três anos de história.
- que eu fiz questão de esquecer...
- se esquecesse não estaria aqui.

ele pediu uma cerveja. eu pedi uma tequila. eu olhava pro cinzeiro. ele olhava pra mim.

- você continua a mesma. o relógio do lado errado, no braço direito. a tequila de sempre. até o cabelo é o mesmo, embora mais cacheado.
- você anda bem diferente. embora seu sorriso esteja o mesmo.
- eu ainda não sorri.
- nem precisa. é o mesmo. eu sei.
- não deveria ter vindo...
- a gente não evita a queda, depois que escolhe se jogar do abismo.

ele riu. sarcástico e ácido. como de costume. não era sua personalidade, mas passou a ser seu escudo depois que as coisas começaram a dar errado.

- e você, continua devorando os corações dos homens que passam pela sua vida?
- e você, continua se escondendo no meu coração devorador de homens?
- consegui me livrar disso...
- hummm, consegui me livrar também.
- sozinha?
- sozinha.
- acompanhado.
- humm, uma surpresa. você que sempre prezou a solidão.
- as coisas mudam... embora meu sorriso fique o mesmo.
- é, outras ficam, embora meu cabelo esteja mais cacheado.

ele percebeu que eu estava segurando o choro. ele percebeu que eu estava desconfortável e não passava mais a mesma segurança do ínicio do encontro. ele pegou o cigarro da minha mão.

- pare de fumar. vai lhe fazer mal!
- nada pode me fazer mais mal do que o que você já me fez.
- eu estava furioso.
- eu estava frágil.
- já passou. foi há quatro anos.
- não passou. suas palavras perduram por muitos anos.
- desculpa.
- você não é de pedir perdão...
- você não é de fumar...

eu evitava olhar. ele evitava deixar transparecer. eu não conseguia suportar. os olhos não conseguiam mentir. ele não sabia como agir.

- tenho que ir. o metrô fecha às 11.
- tá.
- e dos três anos que tivemos juntos, o que ficou?
- nada. pra mim não ficou nada.
- é, nem pra mim.
- mentira sua.
- é, eu sei. toma, esse livro guardei pra você. pra não perder o costume.
- obrigado. não vou aceitar. não quero nada seu.
- não é mais meu. foi dado. agora é seu.

eu deixei em cima da mesa. e saí andando. chorando. ele pegou o livro. e foi atrás.

- posso te pagar mais uma tequila?
- posso fumar mais um cigarro?

ele riu.

- é, seu sorriso continua o mesmo.
- e seu cabelo está muito mais bonito cacheado.

"chegou-se a discutir qual a metade mais bela. nenhuma das duas era totalmente bela. carecia optar. cada um optou, conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia."

[ carlos drummond de andrade ]

Branco e preto

sexta-feira, 2 de outubro de 2009 às 22:18
hoje não chorei por você. cortei o cabelo, eu mesma, em casa, com uma tesoura cega e sem ponta. ficou bonito. pela primeira vez não te perguntei o que achou. nem senti vontade.

hoje não peguei seu casaco. abri o armário, escolhi a roupa, olhei no fundo o casaco dobrado. era seu. emprestado com todo zelo. mas não peguei. sempre que abria o armário, eu pegava e abraçava e cheirava. tinha cheiro de amaciante. mas eu fingia que tinha cheiro seu. não peguei. não pego mais.

hoje não falei de você. contei pra eles do tombo que levei e mostrei rindo o machucado na perna. contei do absurdo que me cobraram de conta de telefone. contei até da manchete do jornal de hoje, que me deixou indignada. mas não contei de você. não falei dos expurgos que precisei depois dos seus brados. não falei de você. pela primeira vez não te mencionei.

hoje pensei em você. no ônibus. na fila do bandejão. na aula de filosofia. amanhã vou pensar em você. e daqui há 13 anos, quem sabe... estarei pensando em você. mas não quero te mais.

hoje não te quero mais. e ponto.

"Quando existe alguém que tem saudade de alguém
E este outro alguém não entender
Deixa este novo amor chegar
Mesmo que depois
Seja imprescindível chorar"

[ Tom Jobim ]

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