Existiu, sei que existiu

quinta-feira, 28 de maio de 2009 às 17:35
Eu estava 28 horas sem comer. Eu estava 20 horas no ônibus. E não era nem na fome, nem na dor nas costas que eu estava pensando... Quando aquele barulho de motor de ônibus parou, a ansiedade de não só 20 horas, mas de uma vida inteira começou. Ele estava ali. Estava tudo ali... O cheiro bom da madrugada, o gosto de cerveja na boca úmida, os dedos no pescoço apertando bem forte... É, estava tudo ali.

Em casa, em frente ao prato de comida, ele me olhava. Eu pegava cada pedaço sem pressa e mastigava sentindo o deleite que é uma comida num estômago já muito vazio. E ele olhava... Era aquele olhar de quem já não aguentava esperar. Era aquele olhar dele que eu já conhecia da penumbra do beijo. Eram aqueles olhos pequenos e pretos... Ah, aqueles olhos!! E as mãos dele segurava a minha no canto do prato. Ahhh, quantas vezes apertei aquela mão com força pra pedir tacitamente que não me deixasse ir! Mas eu não estava pensando em ir naquela hora... A bem verdade é que aqueles olhos não me deixavam nem pensar.

Terminei a comida. E naquela pouca luz da madrugada, pé com pé, mão com mão, boca com boca, a gente conversa o inevitável. Eu tinha medo... Não nego que tinha. Medo daquele final de ano próximo cheio de erros e tropeços. Mas ele tava ali, sussurrando aquelas coisas que eu esperei o ano inteiro pra ouvir... Tão baixinho... Pra não acordar... Pra não acabar... Pra acalmar... Pra fazer o medo sumir... E foi nas confissões de erro dele que eu confundi as minhas confissões. E foi nos perdões dele que eu joguei os meus perdões. E foi na sedução das promessas dele que eu fiz as minhas. E foi uma noite inteira de palavras aveludadas... de risos abafados... de carinhos ao pé do ouvido. A última coisa que eu queria naquela hora era dormir.

A última coisa que eu queria na vida era que acabasse.


*Escrito e postado no dia 28 de março de 2008

Post it

domingo, 24 de maio de 2009 às 15:48
... quando a gente ama, queremos que o mundo inteiro pare por esse amor. queremos as promessas mais ávidas, mais mentirosas, mais incompletas. e sabemos quando acaba o amor, quando as promessas deixam de existir. mesmo que nunca se cumpram, são elas, são essas palavras prometidas que sustentam um grande amor.


"Serás o meu amor. Serás, amor, a minha paz" [ Chico Buarque ]

Memórias de um náufrago II

quarta-feira, 13 de maio de 2009 às 22:03
Quando era criança, gostava muito de histórias. E a vontade delas era tão grande, mas tão grande, que quando não tinha quem me contasse, eu mesma inventava. Ficava horas no chão do quarto fazendo vozes: "- E o senhor, o que fazes aqui?", "-Vim vê-la. Vim porque não consigo passar um só minuto longe de ti.". Suspirava e inventava...

De repente, percebi que não era só eu que inventava histórias. Era o mundo todo. E a primeira história do mundo que percebi foi a história do Papai Noel. Meu avô trabalhava na Cootramo (uma empresa de táxi do aeroporto Galeão) no qual todo final de ano eles fechavam um clube com piscina, e muito verde e parques. Eu contava nos dedos todos os dias para a véspera de natal, separava o biquini e ia de mãos dadas com meu avô, brincar, nadar e conhecer outras crianças. Mas o mais legal daquele clube era o Papai Noel, porque ele chegava de helicóptero. Era tão lindo! Ele descia, barbudo e sorridente, naquela roupa calorenta, e vinha com um saco enorme que fazia barulho... "-Faz barulho! Tem brinquedo de verdade!", diziam as crianças. E ele sentava num grande palco e chamava "-Larissa! Fulana!" e iam todas as crianças sentar no colo dele e receber seu presente. Foi o primeiro velhinho que eu passei a admirar.

A surpresa vinha quando eu abria o presente: "-Meu Deus! É o joguinho de pintar da Eliana! Era exatamente o que eu queria!". Sim, o Papai Noel adivinhava meu presente. Era o máximo! Como não acreditar nele? Vinha dos céus e ainda sabia meu presente (que eu só tinha dito pra mamãe!). Passei a desacreditar em todos os Papais Noel do mundo e só acreditar naquele. Não tinha como não ser verdadeiro! Até o dia que eu descobri. Meu avô disse "-Não vamos esse ano!" e me disse que ele era de mentira e que era minha mãe que comprava o presente antes.

Passei a admirar outro velhinho: meu avô. Que não só me fez acreditar nessa história que parecia tão verídica, como tinha muitas histórias. Nordestino, militar da Marinha, viajou pouco, mas sabia muito. Trabalhou na guarda de Getúlio Vargas e sabia de tudo. De tudo! E me contava tudo sobre História. Sobre Getúlio. Sobre política. Sobre a vida. Depois de militar, virou taxista e sabia todas as ruas do Rio de janeiro. Todas. E andava por ela me dizendo "Gal Costa? Trouxe ela aqui um dia. Chico Buarque? Mora ali, naquele bairro ali! Renato Russo? Ah.. Esse fuma muito! Não gostava de levar ele não!". Que grande contador de histórias meu avô! E foi ele que uniu a minha grande sede de histórias pela admiração que tinha por ele.

Pensando bem, acho que hoje só gosto de política e história por causa dele. Pela maneira como ele dizia e pela nostalgia gostosa com o qual ele dizia. Quando descobri, há uns cinco anos atrás, que ele tinha Alzheimer, procurei maneiras de manter sua memória sempre viva. Passei a comprar livros sobre os assuntos preferidos dele: Getúlio Vargas, Vasco e política. Conversávamos horas. E sua memória estava sempre afiada. Grande lutador esse meu avô! Não se deixou vencer pelo diagnóstico.

Toda vez que me via com o livro perguntava, "O que diz esse livro?". Gostava de saber todas as histórias. Assim como eu. Ou eu gostava assim como ele? Lembro que ele me deu "Memórias de um náufrago" de Garcia Marquez e ficou comentando o livro comigo enquanto eu ficava na rede lendo. "-Mas você lê rápido, menina! Aposto que esquece tudo depois!". Um dia dei Marcelo Rubens Paiva pra ele e me disse "-Mas essas leituras suas são muito dificeis. Deixo pra você, menina inteligente!"

Há umas três semanas atrás, quando o Alzheimer já era muito e o corpo já estava cansado, eu disse "Esqueceu as horas, vô? Quer que eu te ensine de novo?" e ele disse "Não. Tem pessoas que acham ruim esquecer as coisas. Mas é bom, tem seu lado bom. A gente olha as coisas com olhar de criança. Uma criança que olha um relógio e não sabe pra que serve. E olha, olha, olha e acha mágico aquele aparelho que todo dia faz o mesmo movimento. A gente esquece que está casado 50 anos com a mesma mulher e acorda todo dia pensando 'Que mulher linda!', às vezes a rotina nos faz esquecer do belo. Gosto de esquecer. Gosto de descobrir.".

É essa a sabedoria que ele deixou: a do lembrar de esquecer.

Saudades em demasia, vô. As ruas do Rio de Janeiro não são mais as mesmas sem as voltas do seu carro azul.



"Mas era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado." [ Gabriel Garcia Marquez ]

Cor bege

domingo, 3 de maio de 2009 às 22:23
- Te deixo!
- ...
- Te deixo! Te deixo! Ouviu bem? Te d-e-i-x-o!
- Como quem deixa alguém à beira da estrada?
- ...à beira do abismo! Assim que te deixo... à beira do abismo!
- Você se esqueceu de que...
- Te deixo, já disse! Te deixo hoje para amanhã não ter que te deixar mais! Te deixo hoje para esquecer que pra sempre foi você quem me deixou...
- Nunca pedi... Você sabe que nunca pedi para você...
- Então te deixo! Simples assim. Te deixo e digo mais: te deixo só.
- Como quem quebra as correntes dos braços alheios?
- ...como quem amarra uma bola de ferro nos pés do outro para que ele não a siga!
- Ou para que ele não fuja...
- Que fuja! Te deixo à sorte, ao relento, ao vazio do não-ter...
- Mas te tenho.
- Mas te deixo. Deixo junto as dúvidas. Todas elas. Deixo as lembranças. As melhores. Deixo as risadas. As mais sarcásticas.
- Para me fazer sofrer?
- Para te fazer ir.
- Seu medo é que eu volte.
- Meu medo é te deixar. E te deixo. E que não escrevas. Porque vou mudar tudo depois que você partir. Endereço, corte de cabelo, cor de batom, o perfume, o lençol da cama, o lugar do sofá. Deixo tudo... inclusive você.
- E se eu voltar?
- Não estarei te esperando.
- E se nunca voltar?
- É por isso que te deixo. Porque você nunca volta. Você nunca esteve aqui. Nunca.


“Resta... essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade de não querer ser príncipe senão do seu reino.” [ Vinicius de Moraes ]

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