Dialética

terça-feira, 29 de setembro de 2009 às 21:14
Sentei na cadeira do ônibus e vi um jornal. Há quanto tempo não lia um jornal! Peguei-o e estava escrito O GLOBO. Primeira página: "Sociedade aplaude policial." Ah, era aquela história do atirador que matou o assaltante que fazia uma mulher como refém. A manchete me fez rir. Sociedade aplaude? Alguém me entrevistou pra saber se eu aplaudo? Pelo que saiba eu faço parte da sociedade... Mais embaixo havia uma foto de um expectador do assalto que estava batendo palmas. Talvez ele tenha aprovado. Mas ele é a sociedade? Aquela foto representa a sociedade? Do lado direito tinha a foto dos filhos da refém beijando-a e ela sorridente dizendo "Ainda bem que o mataram, tenho filhos e uma vida!". Acho que o jornal esqueceu de considerar que o assaltante também tivesse uma vida. Quem sabe filhos. Fui saber logo depois que ele tinha uma mãe que ficou inconformada por ele ter morrido. Disse ela que ele procurava emprego há muito tempo e não achava. Estava frustrado. Nada justifica o crime, mas... Por que a dicotomia entre o bom tem que viver e o mal tem que morrer? Porque a dona da farmácia de classe média, com filhos, sorriso branco tem que viver em contraste com um cara negro, favelado e sem emprego? Por que ele não tem o direito de viver assim como ela? De se arrepender pelo erro? De se tornar uma pessoa diferente (melhor é pretensão demais!)? A sociedade aplaude mesmo atirar na cabeça de uma pessoa mesmo que haja motivos (motivos para repúdio, não motivos para morte, nunca há motivos para morte)? Fechei o GLOBO. Saltei do ônibus. Joguei no lixo. Outra pessoa poderia pegar e ler e achar que as palmas daquelas pessoas eram suas próprias palmas. Não são. Talvez não sejam. Tomara que não sejam.

Não existe último

segunda-feira, 28 de setembro de 2009 às 22:13
Eu me escondia nos teus erros. Faziam meus teus tropeços. Me perdia nos abraços que tu te recusavas a dar. E fazia deles meu porto, mesmo estando quase sempre à deriva. Te pedia o limitado e lhe dava o infinito. E quando o infinito conquistado, te dei a reticência dos meus medos. Sei lá, não sei falar de nós que não seja na abstração. Não sei te querer menos mesmo quando estas sem razão. Te prometi a tequila e a entrega, me prometestes o vinho e a música. Do prometido, ficou o profanado. Tua cigana tem razão: não fomos feitos um para o outro. Talvez nem tenhamos sido feito de barros tão opostos. Quem sabe tua estrada distante não tenha sido, desde o início, o sinal do presente? Sei lá, tua poesia já não faz mais sentido pra mim. Acho que estou até me esquecendo do som da tua risada. Apesar de todo dia, ao fechar os olhos, me lembrar da imagem muda do teu rosto. Tuas lágrimas não eram tão salgadas quanto as minhas. E aquele desvelo que me atirei, não foi o mesmo mar que te atiraste. Já estou com sono. E no meu céu claro e estrelado, tu és minha trovoada. Sei lá, não sei se me escondo, não sei se me mostro nua e fraca. Não sei mais. Sei lá.


"Toda taça tem no fundo seu veneno." [ Raduan Nassar ]

A pior

domingo, 27 de setembro de 2009 às 11:34
“Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tudo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse ao meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí."

[ O inventário do Ir-remediável ]

... e agora eu era um louco a perguntar "o que é que a vida vai fazer de mim?"

domingo, 13 de setembro de 2009 às 20:37
só tinha levado uma calça jeans e o sol das 10 da manhã estava muito forte. a cidade era nova, mas ela conhecia bem as oscilações de temperatura. noite fria a de ontem. fria no abraço alheio, fria no interior do lençol emprestado. fria. em todos os sentidos. não queria lembrar. não queria mais disfarçar os olhos vermelhos debaixo dos óculos. tirou os óculos e sentou perto de uma árvore. eram quatro bolsas que levava mais o colchonete. suas costas doíam. o jeans a fazia suar. a sombra era boa. ficou.

andava novamente em direção ao ponto. estava longe. nem sabia ao certo onde era. se passaria ônibus. se voltaria pra casa. não sabia ao certo que viera fazer ali. não, se contradisse! sabia sim o que a fizera estar ali e sentiu-se tola demais ao relembrar. estava indo sem se despedir. de ninguém. estava indo fugitiva, perdedora de guerra. não sabia nem porque estava indo. mentira! sabia sim. não queria lembrar. onde estão os óculos mesmo?

chegou no ponto, mas sentiu que não ia conseguir sem se despedir. e sentiu, mais ainda, que se despedir era um erro. inconsequente que era, errante desmedida, guardou o saco do colchonete por entre uns arbustos para não condenar sua fuga. e foi. foi para o último momento. encontrou-o. e quis dar o abraço mais apertado e saudoso. não deu. os outros abraços não foram bem quistos. mais alguns também poderiam não ser. era medrosa, sabia bem. queria ter dito "cuide da garganta, viu?". não disse. não conseguia dizer. o que disse mal lembra. comprei uma camisa do 'pão e rosas' pra você. não dei. não fazia mais sentido.

voltou ao ponto, dessa vez com o erro consumado. chorava tanto que mal via os ônibus que passavam. passaram muitos ou poucos. não sabia. foi andando mesmo assim. pra sabe se lá aonde. em algum momento parou de chorar. não lembra qual. mas parou.

e se foi. "nunca" e "pra sempre" não existem mais.

"Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva". [ Caio Fernando Abreu ]

conto sacro

segunda-feira, 7 de setembro de 2009 às 18:31
a menina não queria fugir. e entre todos os momentos que temia, era este o crucial. era este, enfim, o minuto mais ansiado. havia um espaço pequeno entre as bocas. espaço este, suficiente para se fazer anunciar um beijo. o barulho era alto. mas inaudível. as pessoas muitas, suadas, e espalhadas. espremendo-se nos seus próprios corpos dançantes. o lugar era quente, mas o suor das mãos não vinha dele. vinha do outro. não havia cheiro, mas ela sentia perfeitamente, quase como se existisse, o cheiro do desejo. e se era desejo, era vontade. e a menina não escondia o sorriso. sorria num regozijo só dela. egoísta e infinito. o momento ainda durava, por mais curto e paradoxal que pareça. e parece! mas ela não ligava. a menina soltava todos os músculos retidos. deixava os medos, todos eles, irem embora numa cavalaria invisível. e eram os olhos dele, tudo que via. e eram doces. e cada vez mais próximos. e fechados, celebraram os lábios o beijo atrasado. o beijo postergado. o beijo de meses, de uma vida. o beijo dos contos de fada. só que num conto libertino. a menina se perdeu naquele toque macio de bocas juradas. não havia mais pra onde fugir.

mas a menina queria fugir. cada vez mais.

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