Retalhos

terça-feira, 8 de dezembro de 2009 às 19:35
Era mais um desses dias quentes do Rio de Janeiro. Três da tarde, sol a pino, rodoviária lotada. No chão, havia um menino de mais ou menos treze anos, esquálido, negro, vestido somente com uma bermuda surrada. Deitado com o tronco direto no concreto quente da calçada, as pernas estavam elevadas encostadas na parede. Suava muito. E respirava lentamente escandalizando as pessoas com suas costelas quase à mostra. Parecia morto, incólume ao incômodo alheio. As pessoas, por sua vez, passavam, olhavam, sentiam pena, asco, comentavam "menino, sai daí! vai pegar um insolação!", mas não paravam. Parei.
- Ei, acorda!
Nada.
- Ei, menino. Tá muito quente o chão e você tá se desidratando nesse sol.
- Me deixa! - Ele mal abriu os olhos.
- Tá com sede?
Não respondeu.
- Ó, vem aqui pra sombra que eu te dou um pouco de água. - E tirei uma garrafa d'água da mochila.
Ele sequer levantou.
- Você vai passar mal assim, sabia?
- Sei.
- E você quer ficar aí até quanto tempo?
- Até morrer.
Não soube o que responder. Desejei saber de psicologia e falar frases do tipo "Vamos! Você é muito jovem! Tem muito futuro pela frente!" Mas eu não era psicóloga e não via futuro para ele. Mal via pra mim! Vencida, levantei e fui andando para entrar na rodoviária.
- Tia!
Ele ainda estava deitado, com um olho aberto e a mão tapando o rosto do sol
- Tem comida?
- Não tenho, mas posso arranjar. - Apontei para uma barraquinha do outro da lado da rua. - Quer biscoito?
- Não. Quero hamburger do Bob's.
As pessoas que passavam na rua soltaram uma risadinha sarcástica. Uma velhinha ainda disse: "Não se pode dar confiança pra pivete!"
- Olha, eu não tenho dinheiro para comprar no Bob's.
- Ah, tia. Por favor...
Ele já tinha abaixado as pernas, insinuando levantar.
- Eu também queria, mas não tenho mesmo.
- Poxa, tia...
- Tá, vem. Um hamburger.
E ele deu um salto que me assustou. Levantou com uma força surpreendente. Pegou com uma mão a minha água que estava no chão e com a outra ele pegou a minha mão.
- Vamos, tia. Você come também?
- Eu não. Só você.
De certa forma, era estranho eu estar de mãos dadas com um menino que mal conhecia. Mas para ele era tudo tão natural, que fingi pra mim também ser. Subimos a escada rolante.
- Então você gosta de hamburger do Bob's, né?
- Sim. Quando os guardinhas deixavam a gente entrar, eu catava os restos de hamburger que ficavam nas bandejas. Era tão bom! Mas agora os guardas não deixam a gente subir mais.
- Você nunca comeu um inteiro?
- Não, só as sobras das pessoas.
- E qual você vai querer?
- Tem mais de um, tia?
- Tem, tem vários.
- O que você acha mais gostoso!
Ele andava pulando, com aquela ansiedade infantil de quem muito espera. Veio um guarda:
- Ei, ei! Já falei que você não pode entrar, moleque!
- Mas ela vai comprar um hamburger pra mim!
- Não interessa! Anda, desce lá.
Ele olhou pra mim. Pedindo com os olhos que o defendesse. Que fizesse um escândalo, que brigasse pelo seu hamburger! Não disse nada. Não sei fazer escândalos, muito menos tenho peito para brigar com guardinhas. Tinha problemas com autoridade. O guarda disse:
- Senhora, se quiser compra o hamburger e leva lá fora pra ele.
- Mas é rapidinho... Vamos só comprar e...
- Não senhora. O pessoal vai começar a reclamar. Não pode não!
Eu podia usar um argumento jurídico, sociológico, antropológico, psicológico, mas usei só o apelo emocional:
- Por favor, seu guarda...
- Ó, bem rápido! E ele come lá fora...
Ele ainda me deu um sermão de que ali não era lugar pra caridade, que as pessoas se sentem incomodadas, pois ficam com medo de serem assaltadas e além do mais ele tava nojento, suado, fedido e blá blá blá.
Poderia agora fazer um discurso anti-moralista. Poderia criticar algumas éticas. Poderia defender uma bandeira. Poderia me heroicizar. Mas não vou. Comprei o hamburger, ele pegou e saiu correndo pelas escadas, sem agradecer, sem falar, sem olhar pra trás.
Eu fui pro guichê comprar minha passagem e ir pra casa.

Essa história não tem moral alguma. Sinto muito.

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