Um dia eu acordei e vi um óculos vermelho igual ao meu. Um sorriso igual ao meu. Palavras calmas iguais as minhas. Sonhos iguais aos meus com cores um pouco diferentes. Mais do que um espelho, eu vi uma metade minha perdida que faltava. Platão dizia que éramos seres andrógenos e que Zeus tinham nos partido ao meio para tornar-nos incompletos, infelizes. Era nessa busca mitológica que encontrei a doçura suprema com cabelos cacheados e olhos grandes que de tão grandes dizem tudo, quase tudo, quase nada. Era uma parte minha que faltava, que eu busquei embaixo de tapetes, atrás dos móveis, em cidades distantes... Não, tava ali do lado. E era tão parecida comigo! Minha metade tão bela. E por sermos metade, tínhamos, segundo as leis da física, nossos pólos diferentes para nos atrairmos. Positivo e negativo. Preto e branco. Áries e Câncer. E depois desse dia, eu acordei e vi de novo ela com aquele sorriso gostoso e um abraço. E depois, eu acordei e quis levar um livro pra ela. Lavoura Arcaica, o que acha? E no outro dia, ela adorou e me deu um desenho. E nos outros dias, eu falei do meu amor distante, ela falou do seu amor confuso. E o que era ausente, se tornou forte. E eu confundia minha risada com a risada dela. Minhas idéias com as idéias dela. Minhas piadas - ah, nossas piadas! - com as piadas dela. Uma identificação sem começo nem fim. Uma história contada pelo meio.
Um dia eu acordei e não vi mais. Outro dia acordei e estava longe. Depois acordei de novo, e estávamos diferentes. Mas tínhamos laços tão fortes e tão invisíveis, que os lugares mudavam, os planos mudavam, os amigos mudavam, as palavras à giz no quadro verde mudavam... Mas éramos ainda duas metades. E a expectativa pelo novo era grande que a amizade aumentava com as descobertas. O segredo dela era meu segredo. O meu segredo era também dela. E cada passo inesperado, cada surpresa, cada espanto, tristeza e risada escondida era compartilhado. Havia muita água entre a gente, mas havia ainda muita preocupação. O pranto dela era minha noite insone. Meu júbilo era o regozijo dela. E assim vice-versa. Era bonito de se ver, de se ter, de se sentir.
Um dia eu acordei com saudade dela. Do cheiro gostoso do cabelo dela nas minhas manhãs de aprendiz. Da fofoca engraçada da pessoa da frente. Da piada secreta sobre o trivial. E da risada longa e sem fim sobre tudo que era permitido. E o que não era permitido a gente ria escondido. Mas ria. Acordei com uma saudade dos vestidos que eram quase meus. Das saias que eu fazia minhas. Das indicações sempre certeiras - "ouve essa música que você vai gostar!"- porque como metades o que agradava um ouvido, agradava ao outro, o que agradava a um olho... ao outro agradava. Era assim. Tão simples.
Um dia acordei com tanta saudade que resolvi escrever sobre ela. Em 72 cores. Platão estava certo.
"Quando acontece encontrar alguém a sua metade verdadeira, de um ou de outro sexo, ficam ambos tomados de um sentimento maravilhoso de confiança, intimidade e amor, sem que se decidam a separar-se, por assim dizer, um só momento. Essas pessoas, que passam juntas a vida, são, precisamente, as que não sabem dizer o que uma espera da outra. [...] E a razão disso é que primitivamente era homogêneo. A saudade desse todo e o empenho de restabelecê-lo é o que denominamos amor."
[ O banquete / Platão ]
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não tem como agradecer. veja somente o monte de lágrimas rolando pelo meu rosto. veja, acima de tudo, minha fria capa ariana jogada longe e o chapéu canceriano todo colorido reinando sobre minha cabeça. eu te amo tão pra sempre que chega a doer o meu rosto por causa de um sorriso tão grande. tão seu.