outras aflições

domingo, 8 de agosto de 2010 às 23:28
Ana levantou da cama alheia, ainda trôpega da noite anterior, a noite de muitos vinhos e muitas mentiras. Foi difícil equilibrar-se já que a cama, nada mais era que um colchão estirado no chão. Ele, dormia mansamente, como se estivesse fingindo. Pouco conhecia dele, talvez até estivesse.

Procurou suas roupas. Estavam sujas de um grená escuro do vinho que tanto derramara no meio de tantas risadas escandalosas. Pegou uma bermuda bege dele – quem era ele? – e enrolou-se numa toalha branca que estava pendurada na parede e foi ao banheiro.

Ligou o chuveiro. Não sabia se era permitido tomar banho na casa dos outros, mas estava se sentindo suja de vinho e de mentiras. Ficou com uma certa ojeriza de usar o sabonete dele, ou deles, não sabia mais quem morava naquela casa – que não sabia se era no Catete ou no Recreio -.

A ducha era forte e caiu como uma pedra nas suas costas de ressaca. Foi bom, pensou Ana. Organiza as idéias. Aos poucos, foi-se lembrando de ontem. Do encontro no bar Bukowski. Do “Posso te pagar uma bebida?”. Que bebida era aquela mesmo? Deliciosa! Ele a conquistou com aquela bebida. Não deixou transparecer, claro. Fez cara de pouco caso. Depois falaram de Albert Camus. De Fernando Pessoa. De Roberto Carlos. E quando viu, já estava no táxi indo pra casa dele para “tomar um vinho, gata.” Um vinho, que mal faria? Ele disse que ia mostrá-la um disco do Cartola. Um livro de poesias inéditas “Inéditas?” “Sim, inéditas!” do Vinicius de Moraes. Uma coletânea em off, disse ele.

A casa dele era simpática. Estilo intelectual-francês. Havia um violão no canto do sofá. Uma garrafa térmica em cima da mesa. Livros, muitos deles. E uma vitrola que deixou de funcionar justo aquele dia! Uma pena...

Lembrou-se de algumas palavras mansas dele, dessas bem aveludadas que por trás, pelos lados e frestas dizem essas coisas sensuais que a gente finge que não entende. Ana riu sem querer. Gostou dele. Dos cabelos principalmente. Desleixados. Usava uma camisa branca. “O branco lhe cai bem”. Ele riu. “O vermelho também lhe cai bem.” Estava de verde. Mas deixou pra lá.

Fechou o chuveiro. Enxugou-se com a toalha que já estava meio suja, e não sabia de quem era. Dele? De um outro alguém? Havia vários colchões no quarto, talvez mais pessoas morassem ali. Que seja!

Entrou no quarto, ele ainda dormia dessa vez mais profundamente. Respiração forte. Resolveu vestir sua roupa suja. Já era dez e o sol lá fora, embora fosse inverno, estava se impondo. Viu que a mancha de vinho era grande e que a blusa verde quase parecia vermelha. Viu também que ele, de alguma maneira, lhe lembrava aquele seu ex que foi morar em Brasília e nunca mais lhe telefonou.

Ana ficou um tempo pensando se escrevia um bilhete para o anfitrião. “Olá, tive que ir, meu telefone é...” Não, não. Muito descarado. “Oi. Tive mesmo que ir. Me diverti muito ontem. A gente se vê.” Muito blasée. Decidiu por não deixar nada. E foi embora.

Ana sabia que ele era mais um que iria para suas crônicas, não para sua vida.


E parece que nós continuamos a viver o amor por carência. Metemos no amor tudo o que não sabemos onde meter. [ Inês Pedrosa ]

2 comentários

  1. Anônimo Says:

    Ola
    Passei pra divulgar meu livro que chama Circo
    um olhar poetico.Fica com Deus.
    Waleska.

  2. l. Says:

    "Ana sabia que ele era mais um que iria para suas crônicas, não para sua vida."

    Sempre sabem.

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