Memórias de um náufrago II

quarta-feira, 13 de maio de 2009 às 22:03
Quando era criança, gostava muito de histórias. E a vontade delas era tão grande, mas tão grande, que quando não tinha quem me contasse, eu mesma inventava. Ficava horas no chão do quarto fazendo vozes: "- E o senhor, o que fazes aqui?", "-Vim vê-la. Vim porque não consigo passar um só minuto longe de ti.". Suspirava e inventava...

De repente, percebi que não era só eu que inventava histórias. Era o mundo todo. E a primeira história do mundo que percebi foi a história do Papai Noel. Meu avô trabalhava na Cootramo (uma empresa de táxi do aeroporto Galeão) no qual todo final de ano eles fechavam um clube com piscina, e muito verde e parques. Eu contava nos dedos todos os dias para a véspera de natal, separava o biquini e ia de mãos dadas com meu avô, brincar, nadar e conhecer outras crianças. Mas o mais legal daquele clube era o Papai Noel, porque ele chegava de helicóptero. Era tão lindo! Ele descia, barbudo e sorridente, naquela roupa calorenta, e vinha com um saco enorme que fazia barulho... "-Faz barulho! Tem brinquedo de verdade!", diziam as crianças. E ele sentava num grande palco e chamava "-Larissa! Fulana!" e iam todas as crianças sentar no colo dele e receber seu presente. Foi o primeiro velhinho que eu passei a admirar.

A surpresa vinha quando eu abria o presente: "-Meu Deus! É o joguinho de pintar da Eliana! Era exatamente o que eu queria!". Sim, o Papai Noel adivinhava meu presente. Era o máximo! Como não acreditar nele? Vinha dos céus e ainda sabia meu presente (que eu só tinha dito pra mamãe!). Passei a desacreditar em todos os Papais Noel do mundo e só acreditar naquele. Não tinha como não ser verdadeiro! Até o dia que eu descobri. Meu avô disse "-Não vamos esse ano!" e me disse que ele era de mentira e que era minha mãe que comprava o presente antes.

Passei a admirar outro velhinho: meu avô. Que não só me fez acreditar nessa história que parecia tão verídica, como tinha muitas histórias. Nordestino, militar da Marinha, viajou pouco, mas sabia muito. Trabalhou na guarda de Getúlio Vargas e sabia de tudo. De tudo! E me contava tudo sobre História. Sobre Getúlio. Sobre política. Sobre a vida. Depois de militar, virou taxista e sabia todas as ruas do Rio de janeiro. Todas. E andava por ela me dizendo "Gal Costa? Trouxe ela aqui um dia. Chico Buarque? Mora ali, naquele bairro ali! Renato Russo? Ah.. Esse fuma muito! Não gostava de levar ele não!". Que grande contador de histórias meu avô! E foi ele que uniu a minha grande sede de histórias pela admiração que tinha por ele.

Pensando bem, acho que hoje só gosto de política e história por causa dele. Pela maneira como ele dizia e pela nostalgia gostosa com o qual ele dizia. Quando descobri, há uns cinco anos atrás, que ele tinha Alzheimer, procurei maneiras de manter sua memória sempre viva. Passei a comprar livros sobre os assuntos preferidos dele: Getúlio Vargas, Vasco e política. Conversávamos horas. E sua memória estava sempre afiada. Grande lutador esse meu avô! Não se deixou vencer pelo diagnóstico.

Toda vez que me via com o livro perguntava, "O que diz esse livro?". Gostava de saber todas as histórias. Assim como eu. Ou eu gostava assim como ele? Lembro que ele me deu "Memórias de um náufrago" de Garcia Marquez e ficou comentando o livro comigo enquanto eu ficava na rede lendo. "-Mas você lê rápido, menina! Aposto que esquece tudo depois!". Um dia dei Marcelo Rubens Paiva pra ele e me disse "-Mas essas leituras suas são muito dificeis. Deixo pra você, menina inteligente!"

Há umas três semanas atrás, quando o Alzheimer já era muito e o corpo já estava cansado, eu disse "Esqueceu as horas, vô? Quer que eu te ensine de novo?" e ele disse "Não. Tem pessoas que acham ruim esquecer as coisas. Mas é bom, tem seu lado bom. A gente olha as coisas com olhar de criança. Uma criança que olha um relógio e não sabe pra que serve. E olha, olha, olha e acha mágico aquele aparelho que todo dia faz o mesmo movimento. A gente esquece que está casado 50 anos com a mesma mulher e acorda todo dia pensando 'Que mulher linda!', às vezes a rotina nos faz esquecer do belo. Gosto de esquecer. Gosto de descobrir.".

É essa a sabedoria que ele deixou: a do lembrar de esquecer.

Saudades em demasia, vô. As ruas do Rio de Janeiro não são mais as mesmas sem as voltas do seu carro azul.



"Mas era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado." [ Gabriel Garcia Marquez ]

2 comentários

  1. Tem coisas que eu realmente não entendo, e entre elas a que me ocorre agora é: para que esse espaço que os blogs oferecem para comentários?
    Não, não sou contra a livre comunicação, ao direito à informação e muito menos ao direito de discordar. Sou contra, e serei sempre, ao direito, que uns julgam ter, de inferir na vida alheia através das palavras. Sou contra o risco excedente na obra completa, que é feita sim de vírgulas tremulas e perdidas, e páragrafos desobedientes.
    E agora estou sendo contra eu mesmo. Pois sou eu a comentar depois da vida, antes ao texto, sintetizada com tanto sentimento aí em cima. Talvez nem todos que leiam tenham tido o prazer de ter conhecido seu avô, ouvido ele contar suas histórias e recebido aquele olhar tão carinhoso - e saco a arrogancia do bolso e digo aos ventos que eu tive esse prazer - mas com certeza todos vão sentir a sensação indescritível de ser criança e ter consigo o grande amigo contador de histórias, fazedor de brinquedos, aquele que traz tudo que nós sonhamos existir de mais doce embrulhado num papel de pão.
    Esteja em paz Seu Célio! Que o senhor olhe por essa nossa menina, e que ela faça da vida poesia, assim como o senhor fez!

  2. Felipe Says:

    Estão desaparecendo do mundo pessoas coo seu avô. É importante que a memória destes permaneçam.

    Bonito demais esse texto, Larissa. Em três ou quatro frases conseguiu me embebedar de uma sabedoria incalculável. =)

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