Eram meio-dia e sete. Estava na cadeira única do 217, cuja tarifa é 15 centavos mais cara pelo ar condicionado. O centro do Rio estava movimentado como sempre. Seus engarrafamentos costumeiros, sinais de trânsito em cada esquina, pessoas aos montes, ar cinza, lixo e muito calor. Tudo prosaico para uma terça-feira de março. O ônibus parou no sinal da Rua da Carioca. Olhei pela janela, minha velha abstração de observar as pessoas e vi. Vi! Uma pessoa, suja, só com um short rasgado passando por entre as outras pessoas. Bastante normal seria se não houvesse um detalhe peculiar: ele tinha as pernas defeituosas. E andava... rastejando! Sim, rastejando! Não na maneira mais grossa do rastejar, mas suas pernas faziam voltas, como molas que perderam o contorno, de maneira que ele se locomovia apoiando-se nas mãos e puxando-as como se fosse um peso inevitável. O sinal demorou o tempo exato para eu observar bem essa cena. Um homem rastejando pela calçada. E demorou mais ainda a ponto de eu perceber que ninguém se dava conta disso! As pessoas passavam e não olhavam, e não percebiam, e não se solidarizavam, nem ao menos olhavam com pena. Não olhavam. Ou simplesmente olhavam e não reparavam desviando o olhar para o caminho que segue. Foi um espanto pra mim! Desde pequena, minha mãe me ensinou a não olhar para as pessoas que eram diferentes. Um dia, lembro-me bem, eu fiquei olhando para um homem de cadeira de rodas e ela me deu um tapinha: "Não olha!", "Por que?", "Porque é feio olhar. A pessoa vai se sentir incomodada.". Levei isso pra minha vida toda. Porque era uma agonia imensa. Eu queria olhar o disforme. Por que não olhar? É diferente de mim, ora essa! E a tal curiosidade humana sobre o que nos é peculiar? Talvez fosse mesmo incômodo ser olhado como algo destoante, mas era essa a verdade. Alguém sem braço é diferente de você, ou mesmo da maioria. E tem que ser visto, ser notado como diferente. Não há como fugir! Naquele momento, eu me escondia atrás do vidro para olhar aquele ser tão estranho a mim. Talvez se fosse uma transeunte teria a mesma surpresa, mas esconderia abaixando os olhos. Até que ponto fingir que não se surpreende, esconder curiosidade, solidariedade, pena, é saudável? Aquele ser, tão incomum, tão diferente de todos nós, passando despercebido pela multidão da cidade, que preocupadas demais com horários e compromissos se esbarram e apressam passos, sem notar uma pessoa rastejando ao seu lado? Alguém pararia para perguntar se ele precisa de ajuda? Talvez nem precisasse, estaria acostumado, mas que bem faria saber que alguém pensou em ajudá-lo? Alguém teria se assustado? Ou rido? Ou se preocupado? Alguém teria saído do seu mundo particular para olhar o do outro? O dele que estava tão próximo do chão e tão longe de todas aquelas pessoas potentes com suas duas pernas perfeitamente simétricas? Todas as pessoas, com suas educações passadas pela sociedade, de que olhar o inexato é ofender, humilhar, estão achando, sem querer, uma maneira de não se importar, não se preocupar. Um ser humano que vive 24 horas por dia sendo olhado de cima merece preocupação! Mas todo mundo se recusa a olhar. Todo mundo se recusa a pensar que ele merece, no mínimo, uma cadeira de rodas.
Saí do meu ônibus de ar condicionado pensando que eu sou muito menor do que esse homem que olha tudo do ângulo mais inferior que se possa imaginar. E, pra mim, pior que ser olhado com inferioridade, é não ser olhado. Desprezo ou julgamento? Não sei o que é melhor. Só sei que, pela minha impotência, dedico a ele esse post.
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continua escrevendo bem essa menina... =] indin
De lado a lado serei todo,
de frente muito, de costas pouco.
Além de mim existe outro,
fundado na mesma pedra,
regado a areia e sal.
Espumas de água que pousam na pele,
qualquer que seja a regra injusta.
Seria muito ser de novo.
O tempo é sério cobrador de atos.