De cada amor tu herdarás só o cinismo

terça-feira, 27 de janeiro de 2009 às 14:15
Ela põe a roupa mais bonita. Que, por coincidência, é a mais ousada. Vermelho-vivo. Pernas à mostra. Ela lembra do primeiro dia que vestiu. Íam no cinema. Mas acabaram mudando de planos e resolveram comer uma pizza por aí. Estava linda, se achava. Mas ele não disse nada. Nem olhou pra ela com um olhar mais demorado, como se costumam fazer. Não ele. Ela pôs novamente o vestido espantando essas lembranças. Estava linda! Pegou o batom vinho... Não, não, não é o seu estilo. É morena demais pra cores fortes na boca. Resolveu abdicar do batom. E de pulseiras, de brincos, e de sombras. Estava linda já. O vestido por si só já a encantava. Calçou sapatos pretos. Desses que a deixavam mais mulher. Fez caretas para o espelho. Sentindo-se atraída por sua própria sedução. Por que será que não percebeu, aquele dia, que ela estava tão linda só para ele? A partir de quando ela teria deixado de se tornar bonita pra ele? Não, não queria mais pensar. Nem nele, nem no antes. Afastou novamente qualquer pensamento. Ontem foi o dia da dor. Hoje é o dia do curativo. Quando será o dia da cicatrização? Passou um lápis preto em volta dos olhos, cada vez mais forte, para esconder os olhos pequenos de tanto chorar. Pegou a bolsa. Percebeu que não combinava com o vestido. Mas de que importa? Estava linda mesmo! Desceu a rua, acendeu o cigarro e sorveu a calma na boca sem pintura. O barulho do salto na calçada, a rua mal-iluminada e a fumaça do cigarro davam o ar de filme francês que ela achou que lhe cabia muito bem. O que estava pronta a fazer, também era bem cinema francês e ela deu uma risada estranha com o pensamento de que talvez sua dor não fosse curada como nunca são nos filmes franceses que já assistiu. No fundo, ela sabia que aquela noite não iria curar a sua dor. Que importa? Ela só queria subverter tudo aquilo que era. Ele mesmo não a chamou de tantos nomes, pouco franceses, mais almodovarianos? Não foi ele que a subverteu da sua maneira e a transformou numa criação só dele? Pois agora ela não era mais a mesma. Ela era a criação do momento. Chegou ao seu destino. Jogou o cigarro na calçada e pisou nele como se quisesse apagá-lo, mas ele já estava apagado. Foi só pra não perder o ar francês que ela queria na sua noite particular. Entrou sem bater, sem chamar. Não precisava. Sempre foi sua preferida. Ele sempre a amou. Ela nunca correspondeu. Seu amor, o mais profundo, não era dele. Era de... Que importa? Acendeu outro cigarro para de novo e de novo e de novo afastar esses pensamentos-fantasma. Ela não queria confundir os pronomes. E só pensou no ele que estava do outro lado da porta. Ele a esperava. Tinha certeza. Nunca aparecia, mas sabia que ele a esperava sempre. Ele ouviu sua risada francesa e foi recebê-la. Sem surpresa. Olhou-a pela superfície. Achou-a linda. Olhou-a por dentro. E achou-a triste. Sabia porque estava ali. Sabia que ela queria esquecer. Sabia que logo depois dos beijos, e dos gritos, e dos arranhões, ela choraria. Ele a puxou. Ela tirou os sapatos e foi se embalando no corpo dele com um sorriso perverso demais que ele jamais vira naquela sua alma infantil. Ela cheirava a cigarro. Ela tirou a roupa. Ele nunca a vira tirar a roupa sem ficar vermelha nas faces. Ela, francesa e obstinada, sussurou palavras cruéis a ele. Ele não entendeu. Mas acatou. Foi sua noite. Sua embriaguez. Despida e ousada. Felina e mulher. Não chorou depois. Não queria que as lágrimas manchassem o preto dos olhos, nem sujasse o vermelho do vestido. Menos vivo agora. Saiu dos braços indesejados, mas fartos e saiu pelo dia claro. Estava já tão claro, mas tão claro que seu ar francês desapareceu e ela se tornou ela mesma, com seu pouco glamour e muito drama. E foi sem o barulho dos sapatos pretos, sem a fumaça saindo da boca e sem o escuro da noite que ela se lembrou. Se lembrou de tudo que forçou a esquecer na sua noite de estrela. Que importa? Arrancou o curativo e mexeu na ferida. Ela não queria mais curar.

2 comentários

  1. Psique. Says:

    se não tiver parte dois, nunca mais falo com você
    (fica escrevendo nessa forma envolvente e não cria a continuação? não senhora!)

  2. Anônimo Says:

    :-O
    concordo com o comentário acima...

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