história da vovó #1

terça-feira, 24 de agosto de 2010 às 22:04
Persival Dutra estava empolgadíssimo. Arrumou a mala, a única que tinha, já rasgada aqui e ali e selecionou suas melhores roupas. Deixou pra trás aquelas que não fossem tão boas quanto o destino que se seguia. Dias antes, recebeu um telefonema chamando-o para trabalhar na Rádio Guanabara. Ah, o Rio de Janeiro... Como sempre ansiou conhecer essa cidade das mais belas músicas que anunciava! Agora iria ser um locutor de sucesso na cidade onde tudo acontece! Persival Dutra estava tão empolgado...

Em abril de 1958, ao chegar no Rio, instalou-se num quartinho alugado na casa de seu Ananias. Era uma casa simples no subúrbio da cidade, mas por ora estava bom. Enquanto preparava sua voz no banheiro contíguo, Persival viu um vulto pela janela. Pôs se a olhar. Era Leda da Rocha, filha de seu Ananias. Era baixa, de curvas largas e fartos seios, possuía bochechas rosadas e um sorriso automático. Sorriso este que, mais tarde, descobriria que sempre viria com muitos palavrões.

Leda era desbocada e independente. Embora muito nova, saía falando sobre todos os assuntos, sem filtro algum. Caçoava das pessoas, mesmo daquelas que não conhecia. Defendia o pai com unhas e dentes e se pusessem a falar mal dele, ela soltava os palavrões. Pois não houve remédio: Persival ficou perdidamente apaixonado por Leda. Embora bem mais nova e mais cheia que as meninas da sua idade, ele não pode conter a atração que ela exercia. Era tão solta!

Passava os dias a observá-la. Ela espiava por vezes, mas sequer lhe dava atenção. Não fazia o seu tipo. Mas Persival não desistia. Fazia-lhe poesias que ela aceitava de bom grado. Dizia que eram muito bonitas, depois jogava fora e saía a andar com seu jeito desdenhoso. Dedicava-lhe músicas na rádio que ela vivia cantarolando pelos cantos da cozinha, mas, geniosa, nunca agradecia.

Um dia, Leda se arrumou toda para o show do Cauby Peixoto que ia ter no teatro próximo. Persival ardeu de ciúmes. Puxou-a no canto e proibiu-a de ir. Disse que ela era dele e de mais ninguém, e que esses concertos não eram apropriados para uma menina como ela. Ela riu-se alto e provocador. Mal deu-se o trabalho de responder. Saiu andando para encontrar as amigas.

Leda, no meio do show foi chamada às pressas pelo seu irmão. Algo de muito grave tinha acontecido! Saiu enjuriada porque iria perder metade da apresentação, mas foi então que seu irmão falou apressadamente: Persival tinha tentado se matar! Mas o que ela tinha a ver com isso, oras? Fora do teatro, seu pai já a esperava no carro para levá-la para a casa de sua tia. Comunicou, por fim, que Persival tinha deixado um bilhete que falava no nome dela.

Leda nunca soube realmente o que havia escrito no bilhete. Sua mãe ao ver tamanha desgraça rasgou e queimou-o imediatamente. Soube, contudo, que Persival fracassou ao cortar os pulsos. Não morreu. E foi expulso da casa de seu Ananias. Leda ficou um bom tempo escondida na casa dos tios. Tempos depois, Persival mudou-se para perto dela e volta e meia parava-a na rua para lhe dizer de amor e morte. Leda nem ligava! Soltava o braço e saía a andar displicentemente pela rua soltando palavrões e risadas estrondosas.



Em homenagem à minha avó Leda com suas histórias reais sempre com muito sabor.

sucessão

terça-feira, 17 de agosto de 2010 às 21:17
nossa conversa informal, no meio de garrafas de cerveja, chuva e fumaça de cigarro ficou diferente quando você surpreendentemente disse "você é especial". assim, do nada. talvez até tenha tido algumas palavras antes, algum motivo, algum assunto prévio. mas eu não ouvi mais nada a não ser o seu agrado repentino. belo e novo. e, pela primeira vez, eu te olhei mais fundo. reparei nos seus olhos comuns. no seus dentes brancos e pequenos. no seu cabelo cortado rente. te vi e pensei que você não me lembrava ninguém. era você pura e simplesmente você. amavelmente você. e aí eu comecei a desconstruir tudo aquilo que eu havia acumulando antes de você chegar e me dizer coisas à queima roupa. comecei, então, a pensar que haveria algum sentido em todo aquele ritual colorido que fez com que a gente esbarrasse nossos copos cheios. e quando você se foi, prometendo voltar eu percebi que não iria te esperar porque é difícil desconstruir esse devir que é o passado. e ao ver você andando sem desviar os olhos de mim até virar a esquina, eu vi que seus olhos não eram tão comuns assim como eu pensava. e que amanhã estarei ali bebendo. sem te esperar. sabendo sem querer que você vai aparecer.


"Seu maior medo era o destemor que sentia. Íntegro, sem mágoas nem carências ou expectativas. Inteiro, sem memórias nem fantasias. Mesmo o não-medo sequer sentia, pois não-dar-certo era o natural das coisas serem, imodificáveis, irredutíveis a qualquer tipo de esforço. " [ C. F. Abreu ]

outras aflições

domingo, 8 de agosto de 2010 às 23:28
Ana levantou da cama alheia, ainda trôpega da noite anterior, a noite de muitos vinhos e muitas mentiras. Foi difícil equilibrar-se já que a cama, nada mais era que um colchão estirado no chão. Ele, dormia mansamente, como se estivesse fingindo. Pouco conhecia dele, talvez até estivesse.

Procurou suas roupas. Estavam sujas de um grená escuro do vinho que tanto derramara no meio de tantas risadas escandalosas. Pegou uma bermuda bege dele – quem era ele? – e enrolou-se numa toalha branca que estava pendurada na parede e foi ao banheiro.

Ligou o chuveiro. Não sabia se era permitido tomar banho na casa dos outros, mas estava se sentindo suja de vinho e de mentiras. Ficou com uma certa ojeriza de usar o sabonete dele, ou deles, não sabia mais quem morava naquela casa – que não sabia se era no Catete ou no Recreio -.

A ducha era forte e caiu como uma pedra nas suas costas de ressaca. Foi bom, pensou Ana. Organiza as idéias. Aos poucos, foi-se lembrando de ontem. Do encontro no bar Bukowski. Do “Posso te pagar uma bebida?”. Que bebida era aquela mesmo? Deliciosa! Ele a conquistou com aquela bebida. Não deixou transparecer, claro. Fez cara de pouco caso. Depois falaram de Albert Camus. De Fernando Pessoa. De Roberto Carlos. E quando viu, já estava no táxi indo pra casa dele para “tomar um vinho, gata.” Um vinho, que mal faria? Ele disse que ia mostrá-la um disco do Cartola. Um livro de poesias inéditas “Inéditas?” “Sim, inéditas!” do Vinicius de Moraes. Uma coletânea em off, disse ele.

A casa dele era simpática. Estilo intelectual-francês. Havia um violão no canto do sofá. Uma garrafa térmica em cima da mesa. Livros, muitos deles. E uma vitrola que deixou de funcionar justo aquele dia! Uma pena...

Lembrou-se de algumas palavras mansas dele, dessas bem aveludadas que por trás, pelos lados e frestas dizem essas coisas sensuais que a gente finge que não entende. Ana riu sem querer. Gostou dele. Dos cabelos principalmente. Desleixados. Usava uma camisa branca. “O branco lhe cai bem”. Ele riu. “O vermelho também lhe cai bem.” Estava de verde. Mas deixou pra lá.

Fechou o chuveiro. Enxugou-se com a toalha que já estava meio suja, e não sabia de quem era. Dele? De um outro alguém? Havia vários colchões no quarto, talvez mais pessoas morassem ali. Que seja!

Entrou no quarto, ele ainda dormia dessa vez mais profundamente. Respiração forte. Resolveu vestir sua roupa suja. Já era dez e o sol lá fora, embora fosse inverno, estava se impondo. Viu que a mancha de vinho era grande e que a blusa verde quase parecia vermelha. Viu também que ele, de alguma maneira, lhe lembrava aquele seu ex que foi morar em Brasília e nunca mais lhe telefonou.

Ana ficou um tempo pensando se escrevia um bilhete para o anfitrião. “Olá, tive que ir, meu telefone é...” Não, não. Muito descarado. “Oi. Tive mesmo que ir. Me diverti muito ontem. A gente se vê.” Muito blasée. Decidiu por não deixar nada. E foi embora.

Ana sabia que ele era mais um que iria para suas crônicas, não para sua vida.


E parece que nós continuamos a viver o amor por carência. Metemos no amor tudo o que não sabemos onde meter. [ Inês Pedrosa ]

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