refazendo

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010 às 23:34
Despertou-se de súbito. O sol na cara. A poltrona desconfortável. A estrada esburacada que fazia o ônibus tremer. Nada disso o acordara. Era o cheiro. Sim, era o cheiro. O cheiro dela. Todas as vezes que ele viajava ao seu encontro, em algum momento antes da chegada, em algum ponto que não sabia qual, em alguns poucos quilômetros de proximidade, ele sentia, de forma inefável, o cheiro dela.

O cheiro. Era um cheiro bom. Ele sorriu. Sem nem perceber, sem nem se dar conta do despropósito que é sorrir para um cheiro. Começou a mexer a cabeça como quem segue um cheiro invisível por natureza, mas não precisou. O cheiro estava ali. Por todo o ambiente. Olhou para os lados para ver se os outros, meros passageiros, também o sentiam. Estavam dormindo. E os que estavam despertos, olhavam em volta a procura do ponto certo.

Mas ele tinha o cheiro por perto. E era aquela mistura gostosa da pele dela com o cheiro do cabelo. Aquele doce amálgama de quando ela saía do banho: a pele fresquinha junto com o aroma do xampu que ela usava. Não sabia porque, mas os cremes ficavam muito mais cheirosos quando vinham do cabelo dela.

Fechou os olhos e ficou lembrando das muitas tardes em que ela desfilou reinante com seu cheiro de menina. Menina que não precisa de perfume. Menina que tem como essência seu próprio cheiro. A menina que, sem querer, tinha o elixir que o fascinava. Jean-Baptiste Grenouille, sem dúvida alguma, percorreria céus e terra atrás desse fascínio.

Lembrou-se, com júbilo e saudade - mais júbilo que saudade -, dos banhos compartilhados. Do toque secreto e sereno das mãos que queriam perfumar. De quando ela penteava os cabelos, jogando água pelos cantos, cantarolando alguma música com desafino.

Ele percebeu, contudo, com saudade e tristeza - com igual saudade e tristeza - que não estava indo visitá-la. Que não estava sequer próximo à sua casa. Que o ponto final não era sua rodoviária onde ela estaria a sua espera com algum presente escondido na mochila, sempre pesada.

E foi assim que o cheiro dela chegou, assim meio sem aviso, pra dizer que não adianta fugir. Ela estaria sempre ali. Esperando por ele.

- Cheiro é uma coisa muito doida, né?



"(...)e ao mesmo tempo, inesperadamente, depois de mais de vinte e quatro horas sem pensar nisso, e só agora percebia que, durante todo esse tempo, não fizera outra coisa senão permanecer consciente do estar inconsciente dele no meu pensamento(...)" [ Onde andará Dulce Veiga? ]

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