estava decidida: iria esquecer. não era uma resolução de ano novo, um objetivo de fim de tarde, era uma decisão pra toda vida. quem sabe para essas e para muitas outras que virão! a não ser que volte barata, gregor samsa de outros milênios, aí não seria uma deliberação útil. mas enquanto gente, humana errante e decidida, verme transvestido, iria esquecer. decididamente. de imediato, se possível. e sem essa de que é impossível abusar do tempo em questões de memória. impossível e sempre são palavras tão utópicas pra ela como choro de alegria. e como boa viajante, acreditava piamente em choro de alegria. acreditava, veja só, nas coisas utópicas mais do que nas possíveis. amor, por exemplo. quem acredita no amor depois que ele acaba? ela, pois, acreditava mais no desamor e na beleza que ele tinha. se por ventura possuísse alguma. mas voltando a sua decisão matinal, abriu um dos muitos livros da sua estante para começar a tarefa do esquecimento forçado. e rubem fonseca dizia "no meio da sala, entre o sofá vermelho e a escrivaninha desbotada, ela deu a sua cara à tapa, literalmente.". não, não, sem a acidez do nosso fonseca. que tal a doçura do caio em 'onde andará dulce veiga?': "no meu ouvido, pedro repetia que não podíamos fugir daquilo, que estávamos predestinados, que fora um encontro mágico, que precisava de mim para não morrer de solidão, abandono e tristeza.". ai, ai, ai. tudo lembrava o que passou. o que ela teimava relutantemente em esquecer. largou os livros. eles, de alguma forma escarnecedora, iriam lhe contar coisas da sua própria vida. e ela queria deixar pra trás não sua vida, não seus erros, mas seus desencontros. pegou suas coisas, roupas, papéis, canetas, escova de dente e o óculos de sol e foi embora. é assim que se esquece? fugindo? custa nada tentar...
espera voltar pra saber se realmente sua memória lhe traiu. até lá!
Cobra cega.
Há 5 anos